A Primeira Pedra

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Quem nunca pecou que atire a primeira pedra.

Mas elas acertam-me sempre.

E partem.

E rasgam.

E doem.

É excruciante!

Ouço os meus gritos a ecoar nos meus ouvidos, cubro o rosto para esconder as lágrimas e fugir do mundo.

E rezo por algo, sem ter bem a certeza o quê. Talvez que parem, ou paz. Que tudo acabe depressa.

Mas ao meu redor os insultos continuam acompanhados de gargalhadas sádicas e divertidas. Acham que podem julgar uma pessoa pelos laços de sangue que a prende.

Podem? Será que sim? Eu mereço isto? Que fiz eu?

Manchas negras começam-me a preencher a vista e os meus soluços começam a ficar mais fracos.

Sei nesse momento que atingi o meu limite, não aguento mais. Fecho os olhos desejando que não passe de um pesadelo, que quando acordar tudo esteja bem e de volta ao normal.

Mãe, porque me abandonaste?


Acordo sobressaltada e olho para o tecto manchado de manchas negras de humidade sem saber onde me encontro. Levo uma mão ao peito, sinto o coração a bater depressa e a pele encharcada de suor, e depois tapo os olhos com o braço.

Que idiota que eu sou. Estou deitada aprisionada nas roupas da cama, húmidas de suor, mas em casa. Onde mais haveria de estar?

Sento-me, resignando-me à realidade que aquele sonho me vai perseguir para sempre, e depois decido-me a levantar-me.

Quando afasto as cortinas da janela, vejo que o céu está coberto de tons de laranja e rosa, o sol já sem ser visto. Quanto tempo dormi?

Dou a volta à cama e agarro no telemóvel, suspirando ao ver que são quase nove da noite. O meu pequeno descanso acabara por se tornar num dia inteiro a dormir. Mas apesar dessas longas horas sinto-me exausta. Quase como se não tivesse dormido nada.

Atravesso a moldura sem porta até à sala de estar e ligo o candeeiro principal ao entrar na divisão mais por hábito do que por necessidade.

O meu apartamento é bem pequeno comparado com um normal, mas demasiado espaçoso para mim.

A sala encontra-se quase vazia, contendo apenas um sofá e uma televisão em forma de caixa pousada em cima de um baú de madeira com ar velho e gasto. A cozinha faz também parte do espaço e além das bancadas decadentes tem apenas mais um frigorífico e um pequeno fogão a gás.

Tudo o que ali se encontra vinha já incluído quando comprara o pobre espaço. Uma visão bem triste no geral.

Entro na minúscula casa de banho e fecho a porta atrás de mim antes de me olhar ao espelho e analisar o meu ar miserável.

Refresco o rosto com água fria e molho também o cabelo demorando-me a olhar o meu reflexo. Olhos cansados observam-me pacificamente e os lábios secos e gretados curvam-se num trejeito de desagrado.

O corte drástico suposto representar mudança, independência, que finalmente assumira as rédeas da minha vida. Mas em vez disso ficara um trabalho lamentável.

Dispo-me e entro no chuveiro, tomando um banho rápido de água fria antes de me embrulhar numa toalha já húmida e ir até à cozinha com os pés descalços, deixando um rasto de pegadas aquáticas atrás de mim.

Não preciso de comer para sobreviver, nem sequer tenho necessidades básicas como uma pessoa normal, mas sinto a falta dessas coisas como qualquer um. Qual o objetivo de não precisar de me alimentar mas sentir fome era ainda uma incógnita para mim, mesmo depois deste tempo todo.

Tiro um pacote de leite do frigorífico e levo-o aos lábios sem me preocupar em virar o líquido para um copo. O sabor desenxabido envolve-me a boca mas a bebida refresca-me a mente.

Observo o calendário pendurado na parede ao lado e procuro o dia de hoje com um deslizar de dedo pelo papel de baixa qualidade. Quando finalmente o encontro, o que demora mais do que seria de esperar por me sentir ainda atordoada com o acordar, leio o post-it colado no quadrado e arranco-o sem qualquer emoção.

Dentro de duas horas tenho um sítio onde estar e um trabalho para fazer.

Sinto-me aliviada por poder distrair-me da minha vida confusa e passar as próximas horas ocupada com algo mais do que tentar adivinhar o futuro.

Principalmente agora que as memórias da noite anterior me começam a voltar à memória todas de rompante.

Atiro o pacote vazio para o lavatório, encaminhando-me para o meu quarto.

Descontrolara-me duas vezes. E como se isso não chegue, quem eu menos quero ver à frente anda a jogar os seus joguinhos de novo. A tentar manipular-me e fazer com que me sinta sem alternativa, certamente.

Acreditando que me pode fazer voltar tão facilmente.

Arranco um par de calças pretas e uma camisola larga igualmente negra da gaveta e, depois de a fechar bruscamente com o pé, deixo a toalha cair no chão e visto-me o mais rapidamente possível.

Pegando no meu único livro e colocando-o dentro da mochila, calço as botas e depois apresso o passo até à porta.

Quando saio olho distraidamente para a entrada do apartamento de Walter do outro lado do pequeno corredor enquanto rodo a chave na fechadura para trancar a porta. As janelas estão escuras, definitivamente não está a casa.

Pergunto-me se ele chegou a falar com o irmão.

Naquela madrugada, depois de termos arrumado o bar, tínhamo-nos encaminhado para casa em silêncio. A viagem normalmente é sempre por volta de dez minutos mas por alguma razão esta parecera bem mais longa. Talvez porque Walter não me falara até se despedir de mim.

Eu sei que ele está chateado comigo pelo que acontecera. Duvido que alguma vez se vá esquecer sequer disso. Talvez o deva compensar de alguma maneira. Tenho de pagar pelos estragos.

Comprimo os lábios determinada e obrigo-me a focar-me no que tenho em mãos.

Não vou pensar nisso agora. Se ele me quer odiar que odeio. Não é como se conviver constantemente com humanos me vá deixar mais feliz. Não sou feliz há séculos. Provavelmente nunca o voltarei a ser.

Mas pelo menos sou livre. Por agora.

Deixo a chave cair na bolsa da mochila e começo a descer as escadas, dois andares, até chegar ao fundo e à entrada do prédio, limitando-me a pensar somente no que tenho de fazer a seguir.

Olho sobre o ombro uma última vez, para a janela da minha casa, para a janela da dele, para o prédio velho onde habitamos, antes de puxar o capuz para cima e seguir em direção ao meu objetivo.

Desta vez, tudo vai correr tal como eu planeei.

The Devil's LoverOnde histórias criam vida. Descubra agora