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O som do comboio traz-me recordações que não quero lembrar. Ecoa nos ouvidos e faz-me pensar nos tambores do Inferno. Aqueles tambores que se sobrepõe à noite e me penetram os sonhos chamando por mim. Convidando-me a voltar.
Movo-me ligeiramente no assento e foco o meu olhar no livro que se encontra no meu colo para me abstrair. Mas não consigo concentrar-me. As palavras parecem desfocadas quando pouso o olhar sobre elas. A mistura de letras não faz sentido.
Esfrego os olhos e suspiro. Não tenho andado a dormir bem, sei que não. Passo as noites fora, os dias ocupada para não me preocupar.
Não durmo há dois dias. Mais de quarenta e oito horas sem um minuto de descanso.
E agora estou quase a chegar ao meu destino e arrependo-me de não o ter feito. Porque fico rabugenta quando estou cansada. Porque o que só de mim já é mau torna-se ainda pior, e o controlo que tão bem sei manter vai-se.
Fecho o livro sem vontade de continuar a fingir que leio e atiro-o para dentro da minha mochila, no assento ao meu lado.
Não sei porque ainda o guardo, aquele livro velho de páginas amarelas, cantos dobrados, capa gasta e a desvanecer. Ao abri-lo sou recebida por uma lufada de cheiro a velho e uma pequena camada de pó.
No entanto não me consigo obrigar a livrar-me dele.
Quando se vive durante muito, muito tempo, aprende-se a desapegar das coisas mais diversas. De repente já nada tem valor, nem sequer as pessoas.
Mas aquele livro, aquela antiguidade que tenho sempre comigo, tornara-se na única coisa que não conseguia deixar para trás.
Sim, sou uma velha sem interesses, tenho uma rotina aborrecida e procuro o que posso para sentir adrenalina. Não gosto de estar parada, detesto ver o tempo a passar, e faça o que faça já nada me consegue animar.
Mas sei que tudo aqui é melhor, tão melhor.
Não tenciono voltar.
Olho para a frente e noto que a mulher sentada à minha frente observa-me enquanto bato rapidamente com a unha do indicador na beira da janela.
Os seus olhos são azuis e desconfiados, como se achasse que a qualquer altura a fosse agredir.
Viro-me para o vidro e pouso o queixo sobre a mão. O meu reflexo, com o seu cabelo preto quase rapado e os olhos dourados mas frios, encara-me com uma expressão séria e aborrecida.
Talvez eu pareça mesmo hostil. Talvez as pessoas passassem por mim na rua e só não fossem para o outro lado por uma questão de boa educação. Talvez eu pudesse começar a sorrir mais.
Ou talvez eu devesse deixar de fazer de conta que a opinião das outras pessoas me interessa.
Uma voz digital informa que estamos a chegar à próxima paragem. Levanto-me e pego na minha mochila, pendurando a alça num ombro só e aproximo-me da porta, onde me encosto ao pilar mais próximo de forma a poder ser a primeira a sair.
Puxo o capuz para cima e escondo-me nas sombras do meu casaco.
Consigo ouvir as vozes das pessoas ao meu redor a falar sobre as coisas mais banais. Parte de mim está ainda a tentar perceber porque alguém se gabaria de ter comprado um tapete novo quando o comboio para e sem hesitar saio.
É já noite cerrada. O céu negro, nem uma única estrela a dar-lhe cor.
Hoje é noite de lua nova e eu tenho trabalho a fazer.
Caminho para fora da estação e continuo rua abaixo, tentando manter a mente vazia durante todo o percurso. Tenho uma mão no bolso do casaco de pele, e outra a agarrar a alça da mochila. Foco-me nesses pormenores banais.
Meia hora depois chego finalmente ao edifício, um prédio velho de construção incompleta, os tijolos ainda à mostra, as janelas por colocar. Um típico local de encontros para toxicodependentes e sem abrigo.
A fraca luz de uma lanterna é visível através da abertura no terceiro andar.
Subo os degraus calmamente, um passo de cada vez, querendo que quem me espera espere ainda mais. Continuo até ao andar pretendido, sabendo que ninguém se atreve a ir até ali a não ser que eu o autorize e aproximo-me da secretária gasta no centro, a única peça de mobiliário presente na divisão exceto a cadeira coçada atrás dela.
Um homem espera-me encostado a esta, a luminosidade da lanterna a embater-lhe nas feições inchadas como uma luz vinda do submundo, e dirige-me um olhar confuso.
-Haverá alguma razão em específico para ser este o ponto de encontro? Pensei que tinha dito que a reunião seria no seu escritório.
Olho para ele e obrigo-me a sorrir. Quase consigo ouvir o maxilar a ranger com o esforço, os músculos a reteseram-se contrariados.
-Meu caro Sr. Lawson, seja bem vindo ao meu escritório. - Abro os braços de forma a englobar o espaço todo.
Não é verdade, eu não tenho nenhum escritório. Mas ele insistira tanto que tivera de inventar um.
Olha para mim como se eu fosse louca e sou capaz de apostar que ele começa a achar que isto é uma piada de mau gosto.
Uma piada... Como se eu tivesse sentido de humor.
Suspiro e contorno a mesa para me poder sentar na cadeira. Cruzo as pernas e pouso os cotovelos sobre a superfície lascada antes de voltar a falar.
-Mas não acho que esteja aqui para avaliar a minha decoração, pois não Sr. Lawson? - inquiro numa voz fria e profissional.
Ele parece atrapalhado quando olha para mim, a única luminosidade da sala sendo a lanterna dele. Sei que ele mal me consegue ver com aquela luz fraca. Por mais que a tente apontar para o meu rosto as sombras sobrepõe-se sempre.
Suspira para se acalmar e depois então tira um ficheiro da sua pasta. Pousa-o à minha frente e mergulha as mãos logo de seguida nos bolsos das calças para eu não perceber o quão está nervoso.
-Aí está a informação que me pediu. Tudo desde nomes, a números de telefone, moradas e conhecidos.
Pego nas folhas agrafadas sem as conseguir ler mas mantenho-as na minha mão para me impedir de andar de um lado para o outro. Consigo perceber pelo peso que se encontram ali pelo menos uma dúzia de páginas.
-Bom trabalho, agradeço-lhe pela colaboração. - afirmo sem grande emoção.
Tiro um molho de notas de duzentos euros da minha mochila e pouso-o em cima da mesa. Ele agarra-o imediatamente, ganancioso, e começa a contar o dinheiro com o feixe da lanterna focado nele.
- Como prometido, metade agora e a outra metade quando eu confirmar que a informação é verdadeira.
O olhar dele foca-se em mim.
-A minha informação é sempre verdadeira. - diz indignado.
Levanto-me e coloco a mochila ao ombro, enfiando as folhas dentro da bolsa.
-Nao confia na minha palavra? - questiono-o e algo na minha voz faz com que ele se cale. - Muito bem visto que chegámos a um consenso contactá-lo-ei quando tiver a certeza que não me tentou enganar.
À luz trémula que segura, o seu rosto parece extremamente pálido quando olho para ele.
É nesse momento que percebo o quão ingénua estava a ser com aquele encontro.
Volto a tirar o ficheiro e pouso-o bruscamente na secretária, a minha mão a tremer ligeiramente mas sem o querer mostrar.
-Quem encontrarei quando seguir a sua informação, Sr. Lawson? - pergunto-lhe num tom ríspido.
O homem agarra-se ao dinheiro como se a sua vida dependesse disso. Luto contra o instinto de rasgar as folhas e lhe arrancar o molho de notas das mãos gordas e suadas.
Mas ele não me responde, limita-se a estudar-me como se a tentar decifrar qual será o meu próprio passo. O medo é visível nos seus olhos por ver o quanto estou chateada.
Bato com o punho na superfície e levanto mais a voz.
-Sr. Lawson, responda-me!
-Ele apenas me deu a pasta e disse para lhe dar o ficheiro. - afirma finalmente falando depressa e sem pausas como se estivesse a cuspir tudo de uma vez. - Por favor, perdoe-me ele ameaçou-me, disse que queimaria todas as pessoas que conheço e me faria observar. Por favor, eu suplico-lhe, tenho um filho para alimentar, sou pai solteiro não me tire este dinheiro.
A vê-lo ali, um humano do sexo masculino, de meia idade à beira das lágrimas e a suplicar que o perdoasse, não consegui ter pena dele. Apenas consegui pensar no quão patético ele era e em como ainda não me respondera à minha questão.
A raiva começava já a fervilhar, ampliada pelas 48 horas de sono que não tivera. Se eu deixasse aquilo continuar acabaria por estourar. E não me refiro só a mim, o homem à minha frente acabaria por o fazer também, no sentido literal da palavra.
E ele dissera 'ele'. 'Ele' dera-lhe a pasta. Mas 'ele' quem?
Será que...?
Não pode ser...
Ele não!
Qualquer um exceto ele.
Suspiro fundo e tento regular a minha voz.
-Quem é 'ele'?
O Sr. Lawson olha para mim e aponta a lanterna na minha direção. Pela primeira vez ele percebe que não sou o que pareço ser. Sinto formigueiro na pele, os olhos a arder, acredito que neste momento estou em plena perda de controlo.
-Lúcifer! - exclama deixando cair a lanterna em choque e recuando até chocar com a parede. - Ele apresentou-se como Lúcifer! Por favor não me mate!
O nome cai sobre mim como um peso sobre os ombros. Os meus receios a confirmarem-se. Com um piscar de olhos a minha visão fica vermelha e sei que os meus olhos se encontram a brilhar como que em chamas. Os meus braços ficam cobertos de linhas encarnadas, o traçado da tatuagem que me cobre o tronco e membros por completo.
Neste momento ele não precisa do auxílio da lanterna para me ver, estou encadescente como um demónio em chamas, e ouço soluçar quando viro a secretária ao contrário com violência seguido de um estrondo que ecoa pelo edifício.
O meu olhar encontra o homem que procuro e aproximo-me dele a passos largos sem hesitação. Todo encolhido a um canto, e apesar do seu peso avantajado, consigo facilmente agarrá-lo pelo colarinho da camisola e erguê-lo acima da minha cabeça.
-Oh não, por favor. O meu filho está sozinho em casa. Prometi-lhe que regressava depressa. - choraminga e atiro-o contra a parede contrária sem vontade de o ouvir mais.
Observo a sua silhueta do outro lado da divisão que chora compulsivamente e depois reparo no molho de notas que se encontra aos meus pés. Sem sequer repensar pego nele e aperto-o na minha mão de tal forma que acaba por pegar fogo.
Quando volto a abrir a mão, os dois mil euros que antes ali estavam tinham se transformado em cinzas.
De seguida volto a esconder o rosto com o capuz e agarro na minha mochila, descendo as escadas a correr e sem pensar sequer na horrível pessoa que sou.
Na minha mente há apenas uma coisa que me interessa:
Ele está aqui, e veio para me buscar.

The Devil's LoverOnde histórias criam vida. Descubra agora