Passa bastante da uma da manhã quando pouso furiosamente a minha quarta garrafa vazia sobre o balcão. Faço uma careta subtil ao sentir o sabor amargo a envolver-me o palato, e deixo o queixo cair na palma da minha mão em puro aborrecimento.
Pessoalmente, nunca gostei do sabor que a cerveja tem, muito menos o cheiro nauseante que me dá a volta ao estômago. Mas o maior problema de se ter a minha idade é que se perde a capacidade de se ficar minimamente embriagado, tal a tolerância que se adquire.
E precisamente por causa do álcool não ter qualquer efeito em mim, limito-me a beber continuamente, enjoada até aos poros do sabor a álcool e cereais mas desejando que "beber para esquecer" se me aplicasse.
Ergo levemente a mão que segura o gargalo da garrafa.
-Walter, outra por favor. - peço ao bartender do outro lado do balcão, este acenando-me com a cabeça ao acabar de servir um grande copo de uma bebida espumosa a um dos seus clientes.
Moonlight é o nome do bar. Uma parceria entre Walter, o meu vizinho do lado, e James, o seu irmão mais novo, o espaço é um café de poesia durante o dia - tudo muito neutro, muito hipster com galões de cinco euros e lattes de mil e um sabores - e é frequentado maioritariamente por motards e gente solitária com ar de poucos amigos, o lugar perfeito para mim, durante a noite.
Quando perguntara a Walter a razão do nome ele suspirara e olhara para mim com os seus espantosamente claros olhos azuis.
-Porque o Jim é um lamechas e uma aposta é uma aposta.
Essa explicação dá para umas centenas de teorias mas a que eu acredito ser mais provável é que os dois irmãos tinham apostado algo e ao ganhar James acabara por nomear o estabelecimento em homenagem à sua namorada Rose, a quem chama Luar, de forma tão enjoativa.
O nome não parece agradar minimamente ao seu dono noturno mas este tenta sempre não o mencionar. Nem ele, nem os próprios clientes, que se referiam secretamente ao bar noturno como sendo a Toca do Dragão.
E em dias como este, em que o meu aborrecimento atinge níveis descomunais e tenho receio de adormecer, é aqui na Toca do Dragão que me instalo. Sempre naquele mesmo lugar ao balcão. Sempre no canto mais próximo da saída. E passo a noite a beber a cerveja mais rasca que Walter tiver em armazém.
Ele costuma dizer até que só o que eu bebo serve para pagar a sua parte do aluguer e pessoalmente acho bem possível que seja verdade.
Ele pousa a nova cerveja há minha frente e agarro-a rapidamente, sentindo a frescura e a humidade dela proveniente a refrescar-me a palma e subsequentemente a distrair-me dos meus pensamentos mais profundos.
-Má noite? - questiona-me limpando a superfície à minha frente, a sua barba loira a decorar-lhe o rosto e a esconder parte das suas expressões mais subtis.
Dou um trago generoso na minha bebida e depois balanço a garrafa na minha mão, olhando o líquido a mover-se de um lado ao outro circularmente.
-Má vida. - respondo-lhe num tom aborrecido movendo o meu olhar para ele.
O homem sorri, as rugas no canto dos lábios e por baixo dos olhos a moverem-se com o gesto. Se tenho de referir alguém de quem gosto nesta minha nova vida aborrecida ele é mesmo a única pessoa que me vem ao pensamento de imediato.
É algo na maneira como é reservado e não faz perguntas e ao mesmo tempo tem um sorriso fácil que lhe ilumina também os olhos claros.
O seu cabelo e barba estão ambos despenteados, a sua face marcada por rugas no seu rosto demasiado envelhecido para a idade que tem devido ao seu péssimo hábito de fumador, e parte de uma tatuagem de um morcego é visível através do colarinho da camisola demasiado larga, acompanhada por mais umas quantas escuras nas costas da sua mão até desaparecerem debaixo das mangas.
Em termos mais concretos, ele parece-se em parte muito com um sem-abrigo. Um sem-abrigo demasiado tatuado.
Ele tira uma cerveja do refrigerador embutido no balcão e faz com que choque com a que tenho na mão.
-Bem, há má vida.
Ergo as sobrancelhas aceitando o seu brinde e movo a minha garrafa contra a dele, o tilintar do vidro ao embater um no outro a ecoar-me nos ouvidos.
-Não devias estar a beber no trabalho. - comento ao vê-lo beber parte da bebida.
-Eu sou o meu próprio chefe, eu acho que isso me dá vantagem nesse assunto. - responde-me pousando-a ao lado da minha antes de se afastar para ir atender um homem que acabou de entrar.
Abano a cabeça observando as suas costas, e acabo de uma vez só com a metade que me sobrava.
Talvez esteja na hora de ir para casa, comer uma taça de cereais de pequeno-almoço e tentar dormir um pouco.
Tiro o dinheiro do bolso do meu casaco e pouso o que acho ser a quantia certa sobre a superfície preparando-me para sair. Coloco o capuz e caminho até à porta calmamente olhando para Walter à saída mas paro quando vejo que ele se encontra numa discussão acesa com o homem à sua frente.
Meio a cair para o lado da bebida, o monstruoso recém-chegado ameaça o dono do bar com um punho enquanto este lhe ordena que saia do seu estabelecimento.
Sem vontade de interferir mas sentido que Walter merece pelo menos isso como agradecimento pela sua paciência comigo, aproximo-me do homem e toco-lhe no ombro levemente para lhe chamar a atenção.
Mas é quando olha para mim e se levanta para me poder olhar de cima que reparo no quão maior que eu, e até mais alto que o meu vizinho, ele realmente é. Mas em vez de me acovardar com o seu olhar supostamente intimidante olho-o impaciente e cruzo os braços sem paciência para aturar mais porcaria numa noite que começara já bastante mal.
-Sam, não te metas! - ouço Walter pedir mas limito-me a ignorá-lo e a enfrentar o gigante à minha frente.
-Desculpe, mas não deixei de reparar que está a incomodar o meu amigo. Será que se importa de fazer como ele lhe pede antes que que a polícia tenha de ser chamada a intervir? - sugiro num tom de falsa simpatia, esperando que ele entenda a deixa e perceba que não está ali a fazer nada.
Mas em vez disso, recebo uma gargalhada espalhafatosa, seguida de uma pancada com a mão com toda a força no balcão enquanto se ri.
-Agora precisas de uma cabra para te proteger, rapaz? - inquire sarcasticamente enquanto franze as sobrancelhas na minha direção.
Sinto a raiva a ressurgir enquanto troco um olhar odioso com ele. Aperto as mãos em punhos e tento acalmar a respiração, não querendo ter outra explosão como a de horas atrás, e por momentos olho para Walter.
O nosso olhar cruza-se, olhos azuis contra dourados. Uma súplica silenciosa paira entre nós, e decido fazer-lhe a vontade e não me meter nos assuntos dele.
Não lhe quero arranjar mais problemas e sei o quanto sou volátil nestes momentos.
Solto um suspiro e viro costas pronta a ir embora sem dizer mais nada mas depois o brutamontes diz com um riso nojento a acompanhar:
-Oh, a gatinha assustou-se? Limita-te a fazer o que fazes bem e não te metas em assuntos de homens!
Paro a meio do meu percurso, os olhos a ameaçarem entrar em combustão, o formigueiro na minha pele a indicarem a minha perda de controlo.
Baixo o capuz e viro-me na direção dos dois homens piscando os olhos para afastar o fogo que ameaça começar a arder. Caminho lentamente até ao grandalhão, um passo de cada vez saboreando com antecedência o momento em que o deixarei sem conseguir dizer mais nada.
Pensamentos obscenos atravessam a minha mente - maneiras de o torturar, de o fazer sofrer, ensiná-lo que não sou uma cabra qualquer com quem ele se pode armar em macho alfa.
E ele vai chorar, e eu vou adorar cada momento, cada lágrima dele.
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The Devil's Lover
ParanormalVivi milhares de anos. Centenas de vidas. Conheci biliões de pessoas e visitei milhões de lugares. Mas no entanto fujo - do meu destino, de quem sou, de quem tenho de ser. Eu não mereço isto mais que qualquer um e ao mesmo tempo sei que só a mim me...