Aos nove anos, eu sonhava acordado com uma ideia. Planejava, rascunhava, revisava, corrigia, desenhava, anotava no caderninho, tudo com brilho nos olhos. As mãos chegavam a tremer! Me sentia o Coiote bolando armadilhas infalíveis contra o Papa-léguas. Todavia, a presa não era representada por um animal, mas por um imenso amontoado de sonhos: o Shopping. Especificamente, o da cidade de Bebedouro, interior paulista, frequentado por minha família no final dos anos oitenta.
Vou descrever a cena que eu imaginava: meus pais e eu à noite no interior das Lojas Americanas, minutos antes de fechar. Eu os despistava, desaparecia e me escondia embaixo de um dos balcões de frutas. Aguardaria até o último funcionário ter ido embora e depois TCHAM! O Shopping,
fechado, à noite, para o meu deleite! E nos meus pensamentos, me via ali, no escuro, sozinho, afoito, quase sem fôlego por tanta emoção. O Super-Gabriel em seu super-mundo dos sonhos no super... mercado! A minha sensação teria sido idêntica à dos ganhadores do prêmio máximo na loteria: nem saberia o que fazer primeiro!Independente da ordem, iria até a seção de brinquedos, tiraria da caixa a base militar dos Comandos em Ação e a montaria no corredor das bolachas, devorando pacotes de Negresco e Sonho de Valsa. Invadiria com a língua, o nariz e as bochechas as neves quadradas dum potão de Napolitano da Kibon! Instalaria uma barraca de camping e em seguida levaria para lá pilhas, lanterna e umas revistinhas do Chico Bento. Não para ler, mas para "sentir". E, pensando bem, nem Importava que raio de revistinha eu escolhesse: eu queria era poder experimentar o inacreditável acontecimento de estar numa barraca de madrugada, preso num supermercado.
Iluminaria o cenário todo lá de dentro sem fazer mais nada, apenas me deslumbrando com a realização daquela fantasia infantil. E os videogames? Ligaria os meus três preferidos de uma vez: o Master System, o Phantom e o Dynavision. Jogaria três jogos diferentes pausando e alternando-os. Arriscaria umas manobras de skate, tocaria a bateria do stand onde eu sempre lia no cartaz "proibido tocar os instrumentos". Montaria um extenso batalhão de personagens do Rambo, Comandos, He-Man e Jaspion para, em seguida, treinar com os bonecos tiro ao alvo, mirando neles um canhão que atira bolinhas de pingue-pongue.
Misturaria iogurte de morango com calda de chocolate e sucrilhos. Montaria um cardápio digno de restaurante francês, utilizando as mesinhas coloridas de plástico da turma da Mônica. Simularia diálogo de cliente e garçom, ambos interpretados por mim, ora em pé, ora sentado, ora mastigando, ora esbanjando polidez e sotaque estrangeiro na fala.
Ao amanhecer, me posicionaria em um esconderijo qualquer perto das portas de entrada dos funcionários e, ao primeiro sinal de porta aberta, "sumiria na braquiara", de preferência sem ser notado por ninguém. Dava um pinote feliz da vida e depois me virava para voltar para casa sem me importar com mais nada nos dias seguintes.
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Franja, ki-chute e estilingue
Short StoryO "Franja" é uma coleção de memórias de minha infância. Conto sobre a desilusão que tive ao participar de gravação do Xou da Xuxa, travessuras na escola, devaneios infantis, entre outros temas. Escrevi, inicialmente, para treinar a escrita e a memó...