- Não me chame assim.
O resmungo que soltou seria inaudível não fosse o desgosto puro em sua voz. Ainda que não houvesse mais que um restante de sol no horizonte, precisou levantar uma das mãos para impedir a luz de lhe cegar e poder enxergar o homem parado sobre a relva, mesmo que a voz inconfundível lhe garantisse que estava correta sobre sua identidade, ainda que preferisse, apenas naquela vez, estar completamente enganada. Tragou mais uma vez, preferindo voltar a encarar a madeira gasta dos degraus da escada, todo seu orgulho e seu passado lhe impedindo de voltar a olhar para os olhos castanhos que sabia que lhe analisavam.
Ou para a prótese metálica presa ao que sobrara da perna esquerda do homem.
- Mas esse é o seu nome, não é mesmo? Pennelope Lane - ele conservava o ar de diversão em torno de sua expressão que carregava consigo na juventude, que exibia com orgulho desde a primeira vez que os dois haviam se encontrado. Tudo aquilo parecia ter acontecido em outra vida. - Porque você foi concebida durante o intervalo daquela banda cover dos Beatles que seus pais foram assistir em Rockford... Eles ainda gostam de contar essa história, sabe?
- Talvez esse seja o motivo de eu não visitá-los há tanto tempo - soprou a fumaça para o lado, evitando soltar um muxoxo que parecia preso em sua garganta. Aquele assunto sempre a irritara completamente, o tom orgulhoso que seus pais utilizavam toda vez que começavam a velha ladainha após uma taça de vinho ou duas.
- Eles sentem a sua falta, Pennelope.
Claro que sentiam. O suficiente para não terem ido lhe visitar uma vez sequer nos últimos quatro anos, crendo que as ligações em finais de semana intercalados fossem o suficiente para a mulher. Parara de atender ao telefone há alguns meses. E claro que Carter James Owen e seu estúpido sorriso inocente saberiam disso.
Carter, que ainda morava em Chicago em seu apartamento caro e era tratado como algum tipo de deus, o bom filho que retornara ao lar após ter ficado cara a cara com a morte. Ela soubera da possibilidade real de que acabaria o encontrando por ali desde que aceitara o convite da Alexandria. Encontrava pilhas de The Tigers' Trials toda vez participava de eventos em livrarias, os livros sempre posicionados junto aos best-sellers, grandes displays de papelão cuidadosamente elaborados com elogios a obra despontando para todo o canto onde seus olhos pudessem alcançar. Era enlouquecedor, e desbloqueava seu lado piromaníaca toda vez que acontecia.
Precisava repetir sempre para si mesma que não passava de uma foto impressa em brochura, um fantasma de papel que ela não precisava enfrentar.
A versão de carne e osso em sua frente ainda esperava uma resposta, e só por uma vez Pennelope ousou lhe olhar, de verdade, pela primeira vez em quatro anos. Carter ainda era alto como uma estátua antiga, a pele bronzeada pelo sol das atividades ao ar livre que ainda praticava, mesmo com a prótese que começava abaixo de seu joelho esquerdo. Usava jeans gastos e uma camiseta polo branca por baixo de um casaco de couro estofado de lã marrom, talvez quente demais para ocasião, mas ele sempre fora do tipo que sentia mais frio que os outros. Seu rosto levemente ovalado e com a linha do maxilar bem definida ainda exibia uma barba rala e irregular, do mesmo tom de castanho bonito que, às vezes, no sol, ela chegava a pensar que era quase ruivo. Evitara olhar diretamente nos olhos, mas, a não ser que repentinamente tivesse passado a usar lentes de contato, sabia que eles ainda eram de um castanho claro e acolhedor.
- Hm - foi tudo que disse, antes de esmagar o resto do cigarro sobre o musgo do corrimão e se levantar, incapaz de continuar com aquela conversa - Vejo você por aí, Carter.
Conseguiu ver o homem assentir antes de dar as costas, limpando seus jeans da poeira e do musgo que havia grudado no tecido. Tivera tempo de agarrar a maçaneta com uma mão só, sentindo a madeira fria contra a sua pele, antes de ouvir a voz mais uma vez, fazendo um esforço para virar o rosto e observar o rosto sério de Carter.
- Hey, Penny Lane - a seriedade durara apenas um segundo, antes que o homem abrisse o maior sorriso possível e a cumprimentasse mais uma vez - Foi bom ver você, também.
***
O vento gelado da madrugada engolira os primeiros barulhos distantes, rugidos metálicos crescendo pela floresta e pés que amassavam as folhas que haviam começado a cair no início do outono. Não havia sinal de movimentação algum no Complexo Wanderlust, nada além de algumas luzes acesas por trás de cortinas e os ruídos dos pequenos sinos instalados nas portas dos oito chalés. Se os escritores já bem instalados em seus novos lares dormiam ou não, pouco importava, desde que permanecessem com as portas trancadas.
Naquela primeira noite de setembro tinham a garantia de que estariam sãos e salvos, protegidos dos arredores do Wanderers Peak enquanto não deixassem seus chalés.
Pelos dias que viriam em frente, porém, caso possuíssem alguma religião, era melhor que iniciassem suas preces.
Coisas selvagens correriam pela floresta.
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Wild Things
Mystery / ThrillerNos arredores do Wanderers' Peak, no estado do Maine, o pequeno residencial Wanderlust abriga uma coleção de chalés de madeira, escondidos pelas largas florestas de pinheiros da região e pelas noites estreladas do início do outono. É esse o lar dos...