4. A Verdade

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Capítulo 4

A Verdade

Acordei com o excesso de calor. Sentia-me abafada. Tinha suor a escorrer-me pela testa e, sem pensar muito nisso, dava pontapés aos cobertores para me libertar deles. Assim que estava descoberta e completamente exposta ao ar frio da manha que entrava pela janela aberta, respirei fundo. Fiquei de barriga para cima, a olhar para o teto. Tudo isto, claro, a pensar nos eventos da noite anterior.

Quando ele se transformou, fiquei totalmente baralhada. Não podia acreditar no que os meus olhos viam. Aliás, mal podia acreditar que gostava do meu melhor amigo. Isso, por si só, já era demais.

Não posso mentir. Fiquei assustada, aterrorizada. No momento, o meu cérebro não compreendeu que o lobo em frente a mim era um rapaz que eu conhecia. A minha mente lia aquilo como um ataque, toda eu só funcionava por instintos. Sendo assim, corri.

A minha cabeça tinha-se tornado incapaz de pensar claramente e eu era movida apenas por instintos e adrenalina. Estava na porta das traseiras da casa quando olhei para trás. Não havia nada. A uns bons metros de distância, podia se ver um vulto nas quatro patas a correr na direção oposta. Ainda assim, com as mãos a tremer, puxei a maçaneta e entrei. E, mais uma vez irracionalmente, entrei no quarto dele, totalmente novo para os meus olhos, enrolei-me numa bola no centro da cama e, exausta, adormeci.

Agora estava completamente baralhada. Tinha a mente descansada e a adrenalina a correr-me nas veias não me toldava o raciocínio, mas eu continuava sem conseguir compreender. Já não estava assustada, mas isso não tornava as coisas mais fáceis. Sendo assim, decidi que devia esquecer tudo por uns momentos. Voltei a cobrir-me com os lençóis, virei-me de lado e adormeci.

Acordei, mais uma vez, por causa do excesso de calor. Estava prestes a levantar-me quando senti algo, outro corpo encostado ao meu. Parei, fiquei o mais imóvel que me era possível. Abrandei a respiração, ou pelo menos tentei, para dar a entender que continuava profundamente adormecida. Infelizmente, não fui bem sucedida.

- Finalmente, estás acordada. Estava a começar a ficar preocupado.

Rolei sobre mim mesma e olhei-o nos olhos. Não sei bem explicar porquê, mas uma sensação de medo invadiu-me e tive de me afastar dele. Levantei-me da cama tão rapidamente quanto fui capaz e pus uns bons dois metros entre nós antes de respirar fundo e parar de agir como uma lunática.

- Tens medo de mim? – perguntou-me. A sua expressão deprimiu-me. Parecia triste, magoado e desiludido, não comigo, mas consigo.

E era verdade. Eu estava aterrorizada.

Um «desculpa» muito assustado e bastante inaudível escapou-me dos lábios.

- Esquece, eu estou a fazer isto tudo mal – afirmou, levantando-se também da cama e aproximando-se de mim. Quando não tive por onde fugir, encolhi-me contra a parede. Arrependi-me no segundo em que vi os seus olhos marejados de lágrimas. Estava mesmo, mesmo, mesmo a magoá-lo.

- Sou assim tão assustador para ti? Desculpa, eu gostava de te ter contado doutra maneira – fez uma breve pausa, como se estivesse a ganhar coragem. – Eu não escolhi ser assim, mas pensei que tu, acima de todas as pessoas, me irias apoiar independentemente dos meus defeitos.

Finalmente a minha voz encontrou os meus lábios e eu pude falar mais claramente.

- Desculpa. É só que é muito estranho para mim. Não foi uma coisa bizarra, foram duas, tudo no mesmo minuto. Num segundo estavas a beijar-me, no outro eras uma espécie de lobo. Não consigo compreender isso. Não quero magoar-te, mas vamos ter de nos explicar e ter uma conversa muito, mas muito séria mesmo – disse, desta vez sem qualquer hesitação. Tinha de mostrar-lhe que não tinha medo, embora cada milímetro do meu corpo me dissesse para fugir. Tinha que fazê-lo acreditar que podia contar comigo. Aí, ele iria parar para me contar o que se passava e, depois, talvez eu já não sentisse medo.

Um sorriso apareceu-lhe nos lábios. Tenho a certeza que se sentia aliviado por eu admitir a hipótese de querer compreender todo aquele enigma que não só me confundia, como me assustava.

- Se queres uma conversa séria, é exatamente isso que te vou dar. Estás a sentir-te com fome? Há um café a umas ruas daqui que tem o melhor chocolate quente da zona. Pena que não se possa dizer o mesmo dos donuts.

Sorri com toda aquela normalidade. Sabia bem. E, claro, não pude deixar de aceitar.

Durante todo o caminho não dissemos uma única palavra, simplesmente cantámos as músicas que apareciam na rádio, horrorizando, de certo, as pessoas que passavam na rua que nos conseguiam ouvir. Quando reparei, dei por mim a desejar que nunca tivéssemos a conversa. Sei que tinha sido eu a pedi-la, mas só queria um pouco de normalidade, só mais um bocadinho.

Infelizmente, o destino pareceu virar-se contra mim e o carro parou. Sai e dirigi-me, acompanhada do meu melhor amigo (ou que quer que fossemos, muito sinceramente já nem sabia) ao pequeno café de aspeto acolhedor. Não só gostava do seu ambiente, como me agradava o facto de só lá estar uma senhora idosa, sentada numa mesa ao canto, e o empregado – dava-nos privacidade, e nós precisávamos.

Dez minutos depois, chocolate quente acabado e metade de um donut deixado por comer, não tínhamos dito uma única palavra. Estava à espera que ele começasse, que tomasse a iniciativa, mas, quando isso não aconteceu, decidi simplesmente ser direta e falar.

- Luke, não viemos aqui para comer. Se bem me lembro, temos algo importante para falar.

- Ok, desculpa. Só tinha uma pequena esperança de que te fosses esquecer – respondeu, engolindo em seco.

- Agora não tens escolha. Dizes que não querias que tivesse descoberto daquela maneira. É a tua oportunidade de me contares tal e qual como querias.

- Ok, aqui vamos – disse baixinho, falando mais consigo do que para mim. Respirou fundo, como se se estivesse a preparar para a pior coisa de sempre. Depois, ao contrário do que eu esperava, falou calma e pausadamente, sem pressas. Eu recostei-me na cadeira e ouvi, atenta e um pouco impaciente, como uma criança que houve uma história antes de ir dormir. – Provavelmente já percebeste o que eu sou, mas vou dizer na mesma. Sou um lobisomem – ia interrompê-lo mas não me foi dado tempo para o fazer. – Sei que parece impossível, mas é verdade. Não te sei contar todos os pormenores, sabemos muito pouco sobre isso.

- Sabemos? Há mais como vocês?

- Sim, imensos. Não pensavas que era o único pois não?

Sorri, em jeito de resposta, sentindo-me um pouco envergonhada. Era de facto, muito óbvio.

- Só te posso dizer que é uma coisa genética. Passa de pais para filhos e tem sido assim desde que nos conseguimos lembrar.

- E o que implica exatamente ser-se um…? Bem, tu sabes – hesitei. Parecia estranho. Não, risquem isso. Parecia lunático pensar sequer na palavra lobisomem.

- Primeiro, como tu viste, podemos transformar-nos em lobos. Mas isso só acontece na lua cheia e é completamente involuntário. De resto, podemo-nos transformar sempre que quisermos, mas só ganhamos algumas características.

- Estás a dizer que te podes transformar num homem todo peludo, com braços enormes, dentes de vampiro e unhas mutantes e todas amarelas? – perguntei, levando aquilo na brincadeira.

- É exatamente isso. Bem, exceto os dentes de vampiro. Primeiro, chamam-se presas. Segundo, os nossos são muito diferentes dos deles.

Fiquei chocada. Fiquei chocada porque, do nada, o meu melhor amigo podia transformar-se naquilo que eu tinha crescido a ver em séries de ficção. Fiquei chocada porque não havia só lobisomens, também havia vampiros.

Acho que o choque era bastante evidente na minha cara, o que o encorajou a continuar.

- Também temos poderes. Se queres que seja sincera, há todo um mundo que tu desconheces e eu sei que isso deve ser confuso para ti. Aliás, deve ser avassalador. Mas com o tempo, vais-te habituar. Eu estou aqui para ti – assegurou-me, enquanto pousava a sua mão na minha, em cima da mesa.

E aquele simples toque deixou-me mais confortável.

De repente, eu não sabia bem como, mas tinha a certeza que tudo ia ficar bem.

Se é que isto faz sentido…

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