ser ou não ser alguém

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"-Então minha professora falou que eu poderia entrar numa orquestra logo depois da do estrelas, a OML e em seguida a juvenil. - disse cheia de orgulho.
-E é realmente isso que você quer? Só entrar numa orquestra? - perguntou ele.
-Sim - respondi um pouco confusa com a pergunta dele.
-Sabe quantos contrabaixistas em cada orquestra e quantas orquestras tem no Brasil e no mundo? Milhares, muitos, muitos mesmo, sua professora  e sua orquestra é apenas uma pequena parte deles. - o encarei confusa e surpresa com sua resposta, ele não deveria estar orgulhoso de sua filha por ter um desejo tão grande? - Uma coisa é você querer ser alguém, outra coisa é você querer ser mais um."

Depois desse pequeno diálogo eu segui o resto da viagem pensando nas palavras de meu pai. Refletindo se ele tinha mesmo razão. Naquele momento aquilo me pareceu apenas mais uma das frases sem sentido que meu pai costumava falar pra mim (mas que mais tarde, de algum jeito, acabavam fazendo sentido), mas sempre que vou pensar no meu futuro ela costuma martelar na minha cabeça.

Naquele dia (naquela época, na verdade), eu estava "cega" de uma certa forma. Bem, deixe-me explicar melhor, eu comecei a ter aulas com Julia (minha professora) através de minha mãe, e através dela eu entrei num 'núcleo' chamado "Estrelas Musicais" (onde eu tomava aulas com outros alunos e tive minhas primeiras experiências de tocar em grupo, tem contato com outros instrumentos além do contrabaixo em si e de conviver em uma orquestra, no geral), mas sem deixar de ter aulas particulares à noite com ela. Dava pra sentir que ela realmente gostava do que fazia, dar aulas particulares de graça, depois de um dia de cansaço na maioria das vezes, e pra uma pessoa que vc já atura de segunda a quinta é foda. Mas ela só fazia isso por uma razão: ela acreditava no meu potencial, não fazia por dinheiro (porque raramente  e contra sua vontade ela recebia algumas pontinhas com minha mãe), e nem por pura obrigação, afinal ela já havia me colocado no 'núcleo'!
Já está bem óbvio que ela era uma puta de uma influência pra mim, e como eu fui parar nas mãos dela? Simples, ela era amiga de minha mãe e de uma certa forma queria alunos na turma dela e para ser justo eu deveria ficar lá até atingir um nível básico de teoria musical para poder mudar de instrumento (violoncelo foi minha escolha), mas esse tempo que passei em contato com ela e com o contrabaixo, senti que não valia a pena trocar de instrumento.
Eu costumava ir pra todos os concertos da OJ (orquestra onde ela toca), e ver ela e outros nove contrabaixistas tocando junto com uma orquestra imensa de "sei lá quantos integrantes" foi realmente incrível pra mim.
Principalmente quando pude ver de perto, eu fui chamada para ficar se não me engano três dias, junto com ela numa época que não iria se repetir tão cedo, ela iria tomar aulas com um professor que costuma viajar muito e por isso raramente está em pessoa em Salvador, foi minha primeira vez "nas profundezas do teatro" (apelido bosta kkk), conheci de perto cada integrante do naipe e pude ver alguns deles tomando aula com ele que era professor do professor dela (que mais tarde também seria meu professor), não é demais?! Eu fiquei simplesmente encantada. Aconteceram muito mais coisas mas se fosse detalhar tudo não iria caber aqui, mas aconteceu algo em especial que não saiu da minha cabeça por um bom tempo.
Num ensaio à noite da nossa querida Juvenil, eu estava perto da minha professora (obviamente), ou seja, atrás do naipe inteiro e o colega de estante dela (pessoa que estava do lado) um  contrabaixista chamado Isaac (não sei se escreve assim mesmo), virou pra mim e disse as seguintes palavras:

"-E você toca o quê? - Fez aquela perguntinha que eu já estava me acostumando a responder sempre.
-Contrabaixo mesmo - respondi como se fosse algo já previsto. Mas mesmo sendo algo já previsto percebi uma reação um pouco diferente dele.
- Atá, se fosse do violino já ia botar pra fora - tive que rir disso, é muito comum essa rivalidade entre violinista e contrabaixista, agudo e grave, é um pouco infantil porque ambos os instrumentos são lindos, mas apenas os graves iriam entender essa piada.
- Você não escolhe o baixo, ele que te escolhe, então por favor respeite esta escolha. - ele falou como se aquilo tivesse um grande significado.
E tinha.
Pra mim tinha. Naquela hora senti meus olhos lacrimejarem um pouco (talvez de emoção hehe), mas consegui segurar quando eles voltaram a tocar e eu voltei a prestar atenção ao arco, mãos, forma da mão e tudo de dinâmica e técnica que fosse possível."
Lembro que no final desses três dias (o dia da audição), eu pude ver todos tocarem as tão sonhadas peças que estavam treinando e aperfeiçoando com a ajuda desse professor. E depois que acabou a audição eles juntaram todos os contrabaixistas do naipe da Juvenil, uma contrabaixista que era de outra orquestra superior à juvenil se não me engano e dois outros que faziam parte da OMJ, na verdade, todo mundo se juntou na doida mesmo pra tirar uma foto, se eu não me engano os nomes eram:
Yasmin;Arthur;Fransciscoo;Isac;Kércia;Julia;André; Thalia; o outro aluno da OMJ que eu esqueci o nome; dois outros integrantes do naipe que eu também esqueci o nome; se eu não me engano Roberto tmb tava lá.
Foram dias especiais, com uma pessoa especial. Lá, apesar do grande número de contrabaixistas, não me senti mais uma, me senti alguém, mesmo sem tocar muito.
Me fez aprender que, independente de qual concorrida sua profissão seja, você nunca vai ser mais um, se colocar tudo de si nisto.
Até porque, ser humaninho, você não merece ser mais um, você merece ser nada mais, nada menos, do que você mesmo.

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