Prólogo
Holanda, 1689
Era um menino de mais ou menos cinco anos. Os cachos loiros caíam pelos ombros e colavam na testa suada. Observava uma trilha de formigas que haviam despedaçado uma mariposa, e que agora carregavam seus membros em direção ao enorme formigueiro. Gritos de mulher. Seu pai chegara em casa depois de um longo período no mar e mais uma vez agredia sua mãe. O menino pouco sabia sobre o genitor que raramente via, mas tinha muito medo dele. Tentou se concentrar no trabalho árduo das formigas. Os gritos cessaram, a mãe provavelmente perdera a consciência. O garoto fitou um espaço na fila das formigas e passou o dedo naquela parte do chão. Os pequenos insetos ficaram confusos com a perda da trilha. Corriam desesperados, tentando achar algum sinal ao qual seguir. Uma grande sombra se aproximou, cobrindo a visão do pequeno. Seu pai o encarava com a mesma expressão séria e perturbadora de sempre, a enorme cicatriz que lhe cortava a boca e a bochecha esquerda era assustadora, produto de sua ferocidade ao comandar seu navio, Audácia.
-Agora você aprenderá e ser um homem! - O adulto deu um sorriso quase diabólico, arrastando o pequeno pelos cabelos.Fora a última vez que o menino vira sua pequena casinha na costa da Holanda. Nunca mais teve notícia de sua querida mãe, sua verdadeira família.
Mar do arquipélago caribenho, 1715
Allister acordou assustado e correu os olhos pela cabine da embarcação. Puxou a calça que estava pendurada em cima do biombo que dividia sua cama do resto da cabine e vestiu-a, aproximando-se da enorme escrivaninha de mogno. Cartas de navegação estavam estendidas sobre o móvel, junto com uma garrafa de um caro vinho espanhol que ganhara de Edmund Conerly, governador da pequena ilha de Maritas, localizada no centro do Arquipélago do Caribe. O homem oferecera o "presente" como um adiantamento por um favor um tanto irritante: A única embarcação cargueira disponível de Maritas estava sendo reparada depois de um bombardeio em alto mar e Lorde Conerly precisava de alguém que pudesse levar um carregamento de açúcar até o norte, passando por uma boa porção de mar aberto. O burocrata explicou que não poderia esperar o reparo do cargueiro, pois a encomenda do açúcar estava atrasada. Allister foi então incumbido da missão de levar o maldito açúcar.
Serviu-se de uma boa dose da bebida e subiu até o convés. A madrugada estava quente e o céu limpo permitia a lua derramar toda sua luz sobre a embarcação, Argonauta. A Corveta herdada do pai era rápida e letal. Afundava quaisquer navios pirata que cruzassem seu caminho, tentando entrar na rota de comércio da Nova Inglaterra*, colônia ao norte das ilhas caribenhas. Virou o conteúdo da caneca de uma só vez e se debruçou na mureta, contemplando a imensidão do mar escuro. Era um homem jovem, na altura dos trinta e um anos. Os cabelos muitos loiros herdados da mãe holandesa emolduravam o rosto de expressão forte e máscula. Uma das únicas coisas que lembravam do pai eram os olhos incomuns, cor de mel tão claro que chegavam a ganhar tons amarelados e também as cicatrizes de açoite na pele bronzeada das costas. A crueldade e tirania com as quais fora criado agora refletiam em seu próprio ser. Sua fama de tirano o precedia onde quer que fosse. Até mesmo nos bordéis jamaicanos as prostitutas tinham receio em deitar-se com ele, temendo serem torturadas às custas de algum prazer sombrio. Em tavernas era muito lembrado pela alcunha de Al Turner, o Devorador de Almas por nunca levar seus prisioneiros vivos a terra, mas não significava que não os mantinha por longos dias em sua nau, torturando retirando deles informações valiosas sobre planos de navegação de outros piratas. O que acontecia nos porões do Argonauta ficava lá.
Sentiu tocar em seu ombro a mão de Jason Flambers, seu homem de confiança. O velho vinha já dá tripulação do Audácia. Era um homem bom é confiável, sempre tratara de suas feridas pós surra quando pequeno. Fora sua própria mãe, que Deus a tivesse, o velho Flambers era a única pessoa pela qual Allister nutria algum tipo de simpatia, quase um amor de filho para pai.
- A previsão de chegada é para daqui a dois dias, se o clima continuar colaborando. - O velho se manifestou, debruçando também na mureta.
- Não aguento esses janotas maricas que se acham acima de todos nós. - Allister respondeu, irritado. - Que fizeram para terem o privilégio de governar nos arquipélagos? Não passam de velhos covardes sentados no conforto de suas mansões, exigindo e ordenando, como se fôssemos seus cachorros. A seus olhos somos lixo! Quando o velho bastardo disse-me que deveria escoltar seu maldito açúcar a única vontade que tive foi de mandar que enfiasse as sacas em seu próprio traseiro gordo e que viesse nadando por sí só até seu destino!
Flambers gargalhou. Apesar da desconfiança e até medo com os quais o resto da tripulação olhava para Allister, no fundo ele sabia que o garoto refletia apenas a criação que teve.
- Não se preocupe rapaz. Logo entregaremos a carga, e após abastecer os porões, zarparemos para nossa costumeira patrulha, em busca de alguns ratos para afundar!
Allister cerrou os olhos, não afastando a vista da penumbra do horizonte.
- Tudo o que eu quero é que inferiores como este Conerly me respeitem como devem. Nem que para tal precise forçá-lo à base de murros! - Bufou. - Esse velho decrépito sempre agiu como se fosse um deus e eu, um verme. A maior vontade que tenho é de estripá-lo ainda em vida, mas entendo que isso nunca será possível visto que me recebe sempre muito bem guardado por seus malditos soldados lambe-botas! Enfim, após este trabalho pedirei nossa transferência para as águas de Nova Inglaterra e me livrarei desses carrapatos arrumadinhos de uma vez por todas!*Estados Unidos.

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Do Mar(FINALIZADO - Sem Revisão)
ChickLit(Capa por ANNARODRIGUESS) Allister é um homem do mar. Seu pai o ensinou a ser duro e implacável. A vida o consolidara assim. Capitão corsário da poderosa nau Argonauta, navega junto a sua tripulação de mercenários sob a proteção da Inglaterra com a...