Ventos da Mudança

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Leonor acordou na manhã seguinte com Allister a sacudindo.
- Bom dia, moça! Tenho algo para você. - Colocou sobre ela um tecido pesado e volumoso. - Dos meus homens cuido para que não a ataquem por suas parcas vestes. Mas na ilha deve se vestir apropriadamente. Mandei que fossem buscá-lo, pode ficar meio largo, mas vai servir até que chegue em casa. Assim que se vestir venha me encontrar no convés. - Saiu, deixando-a para se trocar.
Era um vestido. Leonor alisou o corpete. Era decorado com um bordado no padrão de flores grandes. Parecia bonito. Sorriu com tristeza. Nestes cinco dias havia se apegado muito a todos ali. Não queria ter que enfrentar o desconhecido novamente, mas certamente uma mulher cega e sem nenhum conhecimento de seu passado era um fardo pesado demais para um homem tão prático querer carregar. Vestiu-se e saiu da cabine, a procura de Allister.

A menina havia se recuperado bem. Estava mais corada e parecia até ter adquirido algum peso. O vestido vermelho escuro lhe caía muito bem, realçando o tom de pele. Assim que saiu para o aberto do navio os homens a cercaram, se desfazendo em despedidas exageradas, como quem era separado da mãe ou da mulher. Jason estava olhando feio para Allister desde que amanheceu. O velho parecia descontente e agia como uma consciência pesada, não deixando-o esquecer que aquela atitude era ruim. Ele bufou, abrindo caminho por entre os homens e segurando-a pela mão.
- Vou me demorar um pouco, preciso passar no escritório do Governador. Mesmo que ele tenha batido as botas tenho um compromisso a fechar com seu substituto. Agilizem a carga de suprimentos. Quero voltar para o mar o quanto antes! - Puxou-a para desembarcar.

Era a primeira vez que ele a segurava pela mão e não a puxava pelo braço, arrastando-a. Sua mão era grossa, calejada pelo esforço administrar um navio, mas ao mesmo tempo era quente e suavidade com a qual ele segurava a de Leonor a fez querer agarrar forte nele e implorar para não ser deixada lá, naquele lugar estranho.
Um falatório intenso e cheiros variados invadiam os sentidos dela. Não tinha ideia se sempre fora cega, provavelmente não, pois tudo parecia novo demais. Andaram por alguns minutos, antes de entrar em um prédio. Leonor ouvia música e um cheiro forte de incenso tomava o lugar. Allister a conduziu até um banco, para que sentasse.
- Espere aqui, já volto.
Leonor ouviu enquanto ele se afastava, os passos sumindo no meio de risadas e do som de rabecas.
Bastante tempo depois ele retornou.
- Leonor, preciso resolver umas coisas antes de deixar você em seu destino, também não posso deixá-la no Argonauta praticamente vazio, então quero que conheça Vitória. Você ficará com ela por algumas horas.
- É um prazer, minha querida. Não se preocupe, ficará bem aqui.
A voz da mulher era lânguida, sensual. Leonor teve a estranha sensação de estar dentro de um prostíbulo, mas nada disse sobre isso para não ofender a moça.
- É um prazer conhecê-la. -Respondeu. - Espero não ser um incômodo para a senhora.
- De forma alguma! - A mulher respondeu, puxando delicadamente Leonor para que esta se levantasse. - Você gosta de rum? Temos um maravilhoso...
- Nada de bebidas, Vitória! Apenas cuide para que ela não se perca por aí. Logo estarei de volta.
Leonor ouviu os passos dele se afastando e sentiu um aperto no coração. Seu destino estava selado e caminhava para uma direção que não a agradava.

Allister chegou a residência do Governador e logo foi atendido por seu assistente esnobe. O homem havia lhe informado que um substituto temporário fora designado de uma ilha próxima dali e que ele logo seria atendido. Minutos depois ele foi recebido por um homem impecavelmente vestido. Aparentava ter mais ou menos trinta e cinco anos, os cabelos longos presos em um rabo por uma fita davam a ele um ar imponente. Os olhos azuis pareciam receptivos a primeira vista, mas algo se escondia por trás daquela aparência calorosa. O homem se apresentou como William Young e disse que tomaria conta da ilha por enquanto e que todos deveriam reportar-se a ele. Recompensou-o devidamente e este foi o máximo de informações que os dois trocaram. Na hora da despedida Allister apertou a mão que lhe era oferecida e não pôde deixar de notar uma marca de mordida ainda não curada entre os dedos polegar e indicador do homem. Os padrões das marcas lembravam muito os dentes de um ser humano. Ele não deu muita importância a isso e rumou para a taberna, procurando alguém que pudesse levar Leonor até seu destino. Seria uma tarefa difícil encontrar um homem em quem pudesse depositar o mínimo de confiança, mas era preciso.
A taberna estava escura, apesar de ainda não ser nem meio dia. Lotada como sempre, mas a grande maioria ali mal dava-se conta de sua existência, viviam sempre intoxicados pela droga chinesa feita das sementes de papoula. Allister sentou-se num banco alto de frente para o balcão e pediu uma dose de destilado jamaicano. A bebida forte queimou-lhe a garganta. Repetiu o drinque. O lugar cheirava a suor e vômito, tudo parecia pior hoje. Ele franziu as sobrancelhas e olhou ao redor. Maritas era o retrato da decadência após anos de negligência por parte de Edmund. A seu lado um homem visivelmente bêbado ria. Allister o encarou, uma das sobrancelhas levantada.
- Al! - O homem começou, chamando-o alto pelo diminutivo do nome. - Vimos quando entrou mais cedo na casa de Madame Vitória com uma ceguinha. Não sabíamos que tinha gosto por crianças.
Allister franziu o cenho, irritado. A primeira vista Leonor realmente parecia uma menina no meio da adolescência, mas ela mesma havia contado que recordava ter dezessete anos, idade comum para uma mulher se casar. Continuou encarando o homem, certo de que esta desconfortável situação não poderia acabar bem.
- Eu até tentei negociar a menina para mim, mas Madame Vitória me escurraçou de lá, irritada. - o homem soluçou. - Negra maldita! Só por ser alforriada acha-se gente!
O homem merecia um bom soco no meio do nariz, mas Allister não queria arrumar confusão antes de achar alguém para transportar Leonor. Levantou-se para mudar de lugar, o homem não se calava.
-...Parece-me que a vadiazinha é exclusividade sua. Divertiu-se com a mãe dela e agora usaria a menina. Você tenta negar, mas no fundo é igual a seu pai...
O homem não teve tempo de dizer mais nada. Allister acertou-o em cheio no boca, fazendo voar alguns dentes. Os dois se engalfinharam no chão. Rapidamente uma roda se formou em torno dos dois, que se digladiavam ferrenhamente, Allister claramente com a vantagem.

Leonor conversava com Vitória em uma das mesas saboreando pão, queijo e uma limonada deliciosa. A mulher falava de como nasceu escrava e conquistou sua liberdade graças ao antigo dono do bordel que agora administrava quando uma enorme comoção chamou-lhes a atenção. Várias pessoas correram para fora do estabelecimento e gritavam palavras de incentivo. Uma briga perecia estar ocorrendo na rua.
- O que está acontecendo, Vitória? - Ela perguntou, assustada.
- Oh querida, não há de ser nada! A taberna do outro lado da rua está cheia de baderneiros bêbados e drogados. A confusão é constante. No começo ainda há emoção, mas com o tempo você vê que as brigas são tão frequentes que acabam se tornando parte do cenário...
A mulher é interrompida por sons de passo duros.
- Meu Santo Deus! O que aconteceu com você, Allister? - Ela perguntou.
- Este lugar maldito, Vitória! Vai acabar me matando! - Ele respondeu, ofegante.
Leonor assumiu que a briga o envolvia. Sentiu que ele a segurava pelo braço, fazendo-a se levantar.
- Vamos Leonor! - ele a puxava, apressado.
- Como assim? Para onde? Arranjou alguém para me levar? - Ela tropeçava e esbarrava nas pessoas.
- Sim. Não posso confia-la a ninguém neste inferno. Você vem comigo! - percebendo a dificuldade de conduzir ela em meio a multidão ele a ergueu sobre o ombro direito, como quem carrega uma saca de café e saiu apressado, abrindo caminho de volta para o porto.

Do Mar(FINALIZADO - Sem Revisão)Onde histórias criam vida. Descubra agora