Capítulo XI

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XI

Sexta-Feira acercou-se logo e ordenei-lhe que falasse àquele pobre diabo, anunciando-lhe que estava salvo; pegando na minha garrafa dei de beber àquele infeliz, graças ao que, e com a notícia da sua liberdade, se reanimou um pouco, arranjando forças para se sentar na canoa. Mas assim que Sexta-Feira ouviu falar aquele pobre selvagem e pôde observá-lo, começou a estreitá-lo e a abraçá-lo de tal modo que teria sido impossível presenciar a cena sem uma comoção até às lágrimas: víamo-lo gritar, rir, chorar, saltar à sua volta, bailar, cantar, depois voltar a saltar, contorcer as mãos, agarrar a cara e a cabeça, a seguir cantar e bailar de novo, como um homem que perdeu o siso. Passou algum tempo antes de poder falar-me e dizer o que aquilo significava; mas quando caiu um pouco em si, disse-me:

-É o meu pai!

Não consigo exprimir o quanto me comovi com os transportes de alegria e amor filial daquele pobre selvagem, ao ver o pai livre da morte. Nem sequer poderei descrever metade das suas afectuosas extravagâncias. Entrava e saía da canoa a todo o instante, sentava-se ao lado do pai, abria a jaqueta e, agarrando a cabeça do ancião, mantinha-a apoiada ao seu seio durante alguns minutos para o acarinhar; depois, pegava-lhe nos braços, nos pés, entorpecidos e inchados pelos nós, e reanimava-os, esfregando-os com as mãos; dando pelas intenções dele, forneci-lhe um pouco de rum para que lhe friccionasse os membros, o que produziu muito bom efeito. Esta circunstância impediu-nos de perseguir os fugitivos, que nessa altura já mal avistávamos. Foi uma felicidade para nós não se ter isso verificado, pois duas horas mais tarde, antes de eles terem podido percorrer a quarta parte do caminho, levantou-se um vento tão forte que continuou a soprar durante toda a noite; e como o dito vento vinha do noroeste, era-lhes tão contrário que não admitimos que a piroga conseguisse resistir, e que tivessem podido chegar à sua terra.

Voltemos, porém, a Sexta-Feira: ocupava-se com tais cuidados do pai que, durante algum tempo, nem coragem tive para distraí-lo.

Mesmo assim, quando pensei que podia abandoná-lo um momento, chamei-o e veio logo a saltar e a rir, mostrando uma vivíssima alegria. Perguntei-lhe se tinha dado pão ao pai, moveu a cabeça, e respondeu:

- Não. Eu, cão ruim, comer tudo.

Dei-lhe então uma das minhas tortas, que tirei de um pequeno bornal que costumava levar sempre comigo. Ofereci-lhe também um trago de rum mas não o quis provar, e guardou-o para o pai. Ainda conservava no bolso dois ou três cachos, dos quais lhe dei também para ele. Mal lhe levou as uvas, vi-o sair da canoa como se estivesse enfeitiçado e fugir com tanta velocidade que nunca vi corredor mais ágil. A sua rapidez era tão grande que num instante o perdi de vista. Mesmo que o tivesse chamado e gritado, indo atrás dele, estou certo de que não pararia. Voltou em menos de um quarto de hora, mas com menos pressa do que partira; e quando se acercou, vi que caminhava com muito cuidado, isto é, que trazia algo na mão.

Chegado perto de mim, fez-me ver que tinha ido a casa buscar uma das minhas vasilhas de barro para trazer água fresca ao pai. Na outra mão levava duas bolachas. Deu-mas e levou a água ao pai; apesar disso, como eu estava igualmente muito perturbado, provei alguns bocados. A água reanimou logo o velho, melhor do que o rum que lhe dera, pois estava a morrer de sede. Quando o pai de Sexta-Feira acabou de beber, chamei este último e perguntei-lhe se ainda sobrava um pouco de água. Respondeu-me que sim. Ordenei-lhe então que a levasse ao pobre espanhol, que precisava de tantos cuidados como o pai; mandei-lhe também uma bolacha das que Sexta-Feira trouxera. O espanhol, que se sentia, de facto, muito debilitado, descansava na erva, à sombra de uma árvore, com os membros intumescidos e inchados devido aos fortes laços com que o haviam prendido. Vi que quando Sexta-Feira se abeirou dele se ergueu para beber, e depois pegou no pão que começou a comer. Nisto dirigi-me para ele, e dei-lhe um grande cacho de uvas.

Robinson Crusoe - Daniel DefoeOnde histórias criam vida. Descubra agora