Capítulo III

794 9 2
                                    

Mal me vi em segurança, ergui os olhos ao céu, dando graças a Deus por me ter salvo a vida numas circunstâncias em que, alguns minutos atrás, não existia motivo algum para a esperança.

Percorri a praia, erguendo as mãos ao céu, absorto na única ideia de ter-me livrado de um perigo tão iminente, exprimindo a minha alegria com mil gestos e movimentos que não posso descrever. Recordei-me depois dos meus camaradas, que deviam ter perecido, pois eu julgava que fora o único a ter-se salvo do naufrágio. E, na verdade, nunca mais tornei a ver qualquer deles, nem notei o mais pequeno vestígio, excepto três chapéus, um gorro e um par de sapatos, que não formavam par. Então voltei a vista para o barco encalhado; mas o mar mantinha-se tão forte e com ondas tão altas que mal podia distingui-lo.

- Meu Deus! - exclamei -, como foi possível ter conseguido chegar a terra?

Depois de consolar o espírito com a ideia de que a minha situação ainda era suportável, comecei a olhar em redor para saber em que sítio me achava e resolver o que havia de fazer; mas em breve caí num abatimento profundo, porque via que as consequências de ter-me salvo eram terríveis. Encontrava-me molhado e não podia mudar de fato; não tinha que comer nem de beber para me reconfortar; o único recurso que me restava era, pois, morrer de fome ou ser devorado pelas feras. Mas o que mais lastimava era não ter nenhuma arma com que pudesse caçar algum animal para prover à minha subsistência ou defender-me contra os que viessem atacar-me. Tudo quanto possuía reduzia-se a muito pouco: uma faca e um pouco de tabaco numa caixinha. Estas eram todas as minhas provisões e isso submergiu-me em tão terrível agonia de espírito que, durante um bocado, andei a correr de um lado para o outro como um demente. Entretanto aproximava-se a noite e comecei a reflectir tristemente sobre os perigos que correria se, por desgraça, aquela terra estivesse infestada de feras, não ignorando que elas buscam a sua presa durante a escuridão.

O único recurso que à minha imaginação se ofereceu foi subir a uma árvore muito frondosa parecida com os abetos, mas com espinhos, que se elevava perto de mim. Resolvi passar ali a noite, esperando encontrar no outro dia a morte, que considerava inevitável. Afastei-me coisa de um quarto de légua da margem para ver se descobria água doce, e encontrei-a, com grande alegria; depois de beber masquei um pouco de tabaco para entreter a fome; dirigi-me para a árvore, e coloquei-me de maneira que não caísse se chegasse a adormecer. Cortei um pau curto, como um cacete, para minha defesa, e instalei-me naquele leito. Como estava extremamente cansado, apoderou-se de mim um sono tão tranquilo e profundo que poucas pessoas em iguais circunstâncias desfrutaram de outro mais delicioso. E senti-me tão reconfortado como não creio ter estado alguma vez.

Quando acordei era já dia aberto; o tempo estava sereno e a tempestade tinha-se dissipado, não se achando por isso o mar tão violento como antes. Mas o que mais me surpreendeu foi ver que o barco se desprendera durante a noite do banco de areia em que estava encalhado, devido à maré que subia, a qual o arrastou para junto da rocha na qual eu tão cruelmente me magoara na véspera. Apenas uma milha me separava da embarcação, e como parecia que ainda se conservava direita sobre a quilha, senti desejos veementes de ir a bordo para recolher o que me fosse mais necessário.

Quando desci do refúgio na árvore, olhei em meu redor outra vez e a primeira coisa que descobri foi a chalupa, que o vento e a maré tinham arrojado para a costa, a umas duas milhas à direita de onde eu me encontrava. Percorri tudo o que pude para me aproximar da chalupa, mas não me foi possível continuar para diante por ser detido por um braço de mar de cerca de meia milha que existia entre ela e eu; voltei-me um instante, mas então tive muito mais desejos de visitar o barco, onde esperava encontrar algo com que me alimentar.

Pouco depois do meio-dia o mar estava muito sossegado e a maré tão baixa que pude avançar até um quarto de milha do barco.

  Aquele espectáculo renovou a minha dor, pois vi com toda a evidência que se tivéssemos ficado a bordo, toda a tripulação teria chegado a terra sã e salva; e eu não me veria privado de todo o conforto naquela solidão. Tais reflexões arrancaram-me lágrimas, mas como elas não serviam de muito, propus-me chegar até ao buque, se fosse coisa praticável.

Robinson Crusoe - Daniel DefoeOnde histórias criam vida. Descubra agora