VIII
Ocupado nestas tarefas, assim se concluiu o quarto ano da minha estada na ilha, e celebrei o aniversário com o mesmo fervor e a mesma alegria que os anteriores, já que, graças a um estudo constante e grave da palavra de Deus e com o auxílio da sua divina graça, tinha modificado as noções antes adquiridas. O mundo parecia-me agora uma terra longínqua, da qual nada tinha a esperar e com a qual, numa palavra, haviam terminado para sempre as minhas relações. Julgava, mesmo assim, que depois desta vida talvez visse o mundo como um local em que vivera, mas de que tinha saído, e que poderia dizer-lhe como Abraão ao rico avarento:
- Entre os dois medeia um abismo.
Encontrava-me na minha ilha, longe dos vícios do mundo e ao abrigo de todas as suas tentações. Nada invejava porque dispunha de tudo quanto podia desejar: era o senhor daquele território; só tinha de me chamar rei ou imperador daqueles limites; carecia de rival e de competidor que me disputasse a soberania ou a dividisse comigo; podia colher grão bastante para carregar muitos navios, mas nesse caso não podia fazer uso dele; assim, não semeava mais do que necessitava. Tinha tartarugas em abundância mas só as apanhava de vez em quando, consoante as necessidades. Também possuía madeira suficiente para construir uma frota; vinhas que chegavam para carregá-la de vinhos e cachos secos; porém, as coisas de que podia fazer uso eram apenas de alguma utilidade para mim; uma vez satisfeito, que me importava o que sobrava? Se caçasse mais do que podia comer, teria de dar ao cão ou atirar fora; se semeasse mais grão do que podia consumir, seria deitá-lo a perder. As árvores que cortara apodreciam sobre a terra, pois como usá-las de outro modo que não fosse fazer lume para preparar a comida? Numa palavra, a Natureza e a experiência ensinam-nos, depois de maduras reflexões, que as melhores coisas deste mundo são boas enquanto bastam para nosso uso; mas passando daí, já não nos servem para nada.
O avarento mais insaciável ter-se-ia corrigido se se encontrasse no meu lugar, porque possuía uma porção de coisas sem saber o que fazer delas. Nada desejava, à excepção de algumas bagatelas que me teriam sido muito úteis. Tinha, conforme já mencionei, uma pequena soma em oiro e prata, que ascendia, pouco mais ou menos, a trinta e seis libras esterlinas. Pobre de mim! Nenhum uso podia fazer daquele metal olvidado num rincão, e muitas vezes pensava que trocaria de bom grado um punhado dele por alguns rolos de tabaco ou por um moinho manual para moer grão, assim como também daria com alegria o valor de doze soldos de Inglaterra por um pouco de sementes de nabos e cenouras, ou por alguns punhados de ervilhas e favas e uma garrafa de tinta. A moeda não me servia para nada: a própria' humidade da caverna a oxidava durante a estação chuvosa, dentro da gaveta onde a pusera. Mesmo que ela estivesse cheia de diamantes, não lhe teria dedicado qualquer atenção,
A partir de então, a minha vida foi mais tranquila do que antes, e mais proveitosa, tanto para a alma como para o corpo. Muitas vezes, quando me sentava para comer, dava graças a Deus e admirava a sua Providência ao ver a minha abundante comida naquele deserto. Aprendera a considerar a minha posição mais pelo lado bom do que pelo mau, e os meus prazeres mais do que as minhas privações, e com isto experimentava algumas vezes um secreto bem-estar que eu mesmo não chegava a compreender. Chamo a atenção para isto a fim de servir de exemplo àqueles que não desfrutam como devem dos bens que Deus lhes concedeu, porque ambicionam os que não têm. A aflição que nos causa o que não temos parece-me derivar da ingratidão que manifestamos pelo que possuímos.
Passava horas, ou melhor, dias inteiros a imaginar com as cores mais vivas o que seria de mim se não tivesse tirado nada da embarcação. Como poderia encontrar alimentos, a não ser peixe e tartarugas? E mesmo antes de os descobrir teria tido tempo de morrer de fome; ou se houvesse podido subsistir, teria vivido como um selvagem.
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Robinson Crusoe - Daniel Defoe
AventuraO livro conta a história de Robinson Crusoé, um jovem marinheiro inglês. Um dia, ele decide seguir seu caminho e parte para uma aventura sem avisar ninguém. Então embarca em um navio. Como castigo do destino, seu navio é pego por uma tempestade e n...