25 de Setembro de 1995Querido Diário,
Não escrevi mais nenhuma das tuas páginas o resto do fim-de-semana porque nada do que aconteceu me pareceu relevante o suficiente para eu me querer relembrar no dia seguinte.
Hoje quando acordei o céu estava completamente coberto por nuvens negras. A vontade de me levantar e sair de casa era mesmo nula. Ao abrir a janela a pouca claridade do exterior entrou no meu quarto e reparei que aos pés da minha cama estava uma blusa dobrada com um pedaço de papel por cima."Tive que sair mais cedo para o trabalho, tens de apanhar o autocarro para a escola. Não te atrases, 08:00h em ponto. Está frio, agasalha-te.
Beijinhos, mãe."A blusa era de malha, malha grossa daquelas que até pica, de gola alta e preta. Nunca a tinha visto antes, suponho que seja da mãe e que já não lhe sirva por isso é que agora passou a ser minha. Por um lado gostei dela, quando a vesti notei que me fica um pouco larga, e eu adoro roupa larga porque disfarça as curvas que tanto detesto do meu corpo horrível.
Faltavam cerca de 10 minutos para o autocarro passar. A paragem é do outro lado da minha rua portanto tive tempo para dar uma arrumadela ao quarto antes de ir embora. Quase me esquecia dos meus óculos em cima da mesa-de-cabeceira.
Na estante alta do meu quarto estava algo que antes não lá estava. "As coisas não têm pernas" portanto de certeza que domingo arrumei o que restava da minha última caixa das mudanças. Até porque a caixa já não se encontrava mais debaixo da cama.
Foi o pai que me deu esta Fita Cassete. Ainda tem escrito a tinta azul de caneta permanente "The Smiths" com a caligrafia legível da mãe, porque a sua é caligrafia de médico. Às vezes nem o meu próprio pai percebe o que escreve. Sentei me no chão enquanto a observava na minha mão. Com esta cassete lembrei me de uma das poucas histórias que posso contar de quando era mais nova. Tinha 6 anos, quando "Ask" dos The Smiths tocou pela primeira vez na rádio. Lembro-me que tentava imitar a voz do vocalista Morrissey, e que esperava sempre que voltasse a tocar para poder dançar e decorar a letra.
Passados uns meses, no Natal o pai surpreendeu-me com uma cassete gravada por ele com a "Ask", a minha música preferida desde então, e outros êxitos da banda que o meu pai quis que eu ouvisse. Ele orgulhava-se de eu ser tão nova e já gostar das suas bandas preferidas.
São objetos com um certo valor que me fazem lembrar de certas coisas. Essa prenda foi de tal forma importante para mim que ainda a tenho. Dei por mim a chorar, sinto saudades do pai. Levantei-me e tive que me recompor para ir para a paragem, já faltava pouco.
Uns segundos depois de sair do meu prédio o autocarro chegou, corri até ao outro lado da rua. Estava cheio de pessoas com a minha idade, de certeza que iriam também para a minha escola. Sentei-me num dos últimos lugares lá ao fundo, por sorte consegui ficar à janela como eu gosto.
No intervalo grande da manhã entre conversas muito aleatórias com a Mel, a Brenda e o Evan, descobrimos que vivemos mesmo à frente um do outro, eu e o Evan. Não lhe contei que o tinha visto a entrar para o seu prédio no outro dia (lembro-me disso graças a ti diário, obrigada). Ele pareceu entusiasmado por eu ser sua vizinha. Também fiquei a saber que a Brenda tem uma irmã mais velha, já o Evan um irmão mais velho que também anda na nossa escola. Só eu e a Mel é que fazemos parte do clube das filhas únicas. Gostava tanto de ser irmã mais velha.
O Evan falou ao irmão quando passamos por ele no corredor, e ele é definitivamente a cópia dele. Depois disso fomos até à biblioteca porque começou a pingar. Quando ia distraída a olhar para o chão, sim porque a mãe diz me sempre para ver onde ponho os pés, fui contra uma das mesas da biblioteca onde estava uma rapariga sentada a ler algo.
Fiquei vermelha e ainda mais embaraçada quando a Brenda e a Mel começaram a rir. Já o Evan nem se deve de ter apercebido do que se passou porque olhava atentamente para a rapariga.
"Desculpa não reparei por onde estava a andar..."
"Não faz mal." – A rapariga depois olhou na direcção da Mel. –" O quê é que estão a fazer aqui?"
A Mel sentou-se na cadeira à sua frente.
"Cora tu sabes que quando me encontras na biblioteca só pode ser por um motivo..."
"Deixa cá pensar Mel... está a chover lá fora, não está?"
Antes que a Mel lhe respondesse mais alguma coisa a minha curiosidade falou mais alto e interrompi a conversa.
"Vocês conhecem-se? "
"Claro, sou da mesma turma que a Cora desde o quinto ano! Cora esta é a Nicole." – A Mel apontou para mim com o dedo quase a tocar no meu nariz e a Cora sorriu. – "Nicole esta é a Cora."
Até ser hora do toque de entrada e a chuva abrandar, ficamos sentados na mesma mesa que a Cora a conversar. De vez em quando a bibliotecária rabugenta que está sempre por detrás do balcão ia até nós só para nos literalmente dar um banho de cuspo ao gritar connosco para fazermos pouco barulho. Com a gritaria que fazia acabava por fazer mais barulho que nós todos juntos.
O resto do dia foi um pouco aborrecido, o facto de ter ido comer ao refeitório da escola com a Brenda não o melhorou. Enquanto comíamos um rapaz alto com óculos redondos pousou dois panfletos à frente dos nossos tabuleiros.
"Venham assistir à peça amanhã à noite do novo Grupo de Teatro cá da escola. Vale a pena a sério, eu morro no fim portanto é fixe. "
Ao dizer aquilo o rapaz continuou a distribuir mais panfletos noutras mesas. Ficou combinado entre mim e Brenda que amanhã vamos ver a tal peça. Ela ficou de perguntar à Mel, à Cora e ao Evan se também queriam vir connosco.
Quando as aulas acabaram por hoje, desci as escadas que dão para o portão da escola, estavam tão escorregadias que por pouco não caí. Para minha surpresa o carro da mãe estava estacionado ao pé da passadeira. Tinha conseguido sair mais cedo e apanhou-me para eu não ter a ideia de ir a pé com este frio.
A mãe conhece-me bem, porque era exactamente isso em que eu estava a pensar fazer. Não queria nada ter de esperar pelo autocarro da tarde. Estou então desde que cheguei a casa sentada no tapete da sala enquanto escrevo em ti, com o rádio ligado e com uma caneca cheia de chá por beber. Talvez agora já esteja mais frio e não irei queimar a língua como sempre me acontece.Deveria de estar a estudar para o teste de filosofia de quinta-feira.
Até amanhã,
Nicole.
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Infinitas Páginas
Teen FictionEstamos em 1995. Nicole quando chega da escola pela tarde espera sempre sentada no sofá e outras vezes no tapete da sua sala, que passe a sua música preferida na rádio. Enquanto isso, escreve no seu diário os seus pensamentos e os seus sentimento...