Morte de uma velha amiga

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Gostava de pensar que o incidente de havia seis anos atrás tinha sido um sonho.

Bom, era surreal demais para conseguir acreditar que uma mulher como Viviane existia.

Fechei os olhos enquanto acariciava o focinho de Cassiopeia com carinho e relembrava o momento em que a senhora do lago me tentara matar.

"Lamento, criança.", dissera ela com pesar, "Sei que não fizeste mal nenhum ao mundo, mas causá-lo-ás. E eu não posso deixar isso acontecer."

" O quê?", guinchara, sem entender.

Recordava-me vagamente de ver o brilho metálico de um punhal que aparecera do nada na sua mão e de recuar lentamente, com o coração na boca, tal era o pânico que sentia.

Ela avançou, mas notei que as suas mãos tremiam. E aí, percebendo que Viviane hesitava, virei-lhe as costas e corri.

Escutei-a dizer algo do tipo " Perdoa-me Merlin, eu não consigo" mas eu realmente não estava a prestar atenção em nada mais do que as minhas pernas a moverem-se tão rápido quanto a minha respiração.

Nunca mais passeara por aquela parte da floresta. Tinha um trauma demasiado forte. Tampouco dissera ao meu pai pois sabia que não valia a pena. Ele não me ouviria.

Quem no seu perfeito juízo iria?

- Cassiopeia? - indaguei, ao ver que ela parara abruptamente.

Desmontei a minha égua, preocupada. O homem do estábulo, que normalmente cuidava de todos os cavalos da mansão Cristvin dissera-me há dias que a minha montada já não devia ir em longas cavalgadas.

"É um cavalo velho, senhorita", explicara.

Eu não lhe dera ouvidos. Afinal, ele chamara "cavalo" à minha bela égua castanha. Talvez devesse ter levado o seu curto discurso mais a sério.

O meu coração apertou ao notar que Cass se deitara numa posição estranha.

- Oh, não - murmurei, sentindo as lágrimas aflorarem à minha face. - Não te vás, por favor.

Ajoelhei-me ao seu lado e abracei-me ao seu focinho, não ligando ao facto de estarmos num trilho de terra batida no meio da floresta. Sentia que ela não ia durar muito. Sentira-o assim que me apercebera da sua falta de movimento.

Os pássaros cantavam mas até a sua própria melodia, que era a mesma de todos os dias, me parecia de certa forma fúnebre.

- Cass? - acarinhei o seu pêlo castanho. Ela relinchou em resposta, mas pareceu sofrer em executar essa mínima ação. - Não me deixes, por favor. Sabes que já não sei viver sem ti, não sabes? - Afastei-me dela, puxando os meus próprios joelhos contra mim, não me importando em sujar o meu fato de montar. Encolhi-me sobre mim mesma, soluçando. - Nunca mais poderei cavalgar na tua companhia - sussurrei com a voz embargada. - Não te vás, por favor. Não te vás.

Fechei os olhos, sem conseguir conter alguns dos soluços que me escaparam. Sim, qualquer pessoa que passasse iria pensar no quão ridícula aquela cena era. Uma jovem mulher a chorar por causa de um equino moribundo. Pensariam no quão mimada eu era, que nunca tinha visto a morte de frente e pranteava pelos cantos por causa de um animal.

Oh, quem pensasse assim estava bem enganado.

Cassiopeia era bem mais humana do que alguns homens e mulheres que conhecera ao longo da minha não muito longa vida.

Inspirei fundo, tentando recuperar o controlo das minhas emoções. Sabia que tinha de abrir os olhos, mas receava o que me esperava.

Movi a cabeça na direção que sabia que Cassiopeia se encontrava e ousei olhar. Os olhos da minha companhia de longa data estavam fechados. Uma mosca pousara bastante perto destes, mas Cass não franzia os músculos das pálpebras como seria expectável. Procurei por qualquer movimento, algo que denunciasse a sua calma respiração. Mas nada ao longo do seu longo corpo se movimentava.

Cassiopeia morrera.

Inspirei fundo, tentando enterrar a minha dor. Não era nenhuma criança para ficar a chorar. O meu pai teria vergonha de mim se me visse naquele estado.

Escutei o som de asas a bater e, por entre as grossas copas das árvores, vislumbrei a silhueta de vários pássaros negros fugindo de uma ameaça invisível a meus olhos.

A fraca brisa trouxe-me um sussurro que me provocou um arrepio.

- Começou...

***

Leet, o homem dos cavalos que fizera aquele curto discurso em que evidenciava que Cassiopeia não estava mais apta a cavalgar cavou mais uma vez a terra, colocando o conteúdo castanho de lado.

Observava os seus movimentos mecânicos e repetitivos desde que começara a abrir a cova onde seria posto o cadáver da minha égua. Informara o meu pai do óbito mal chegara à grande mansão que, pelas duas torres que possuía, podia ser chamada de castelo.

Barnier, obviamente, apenas assentiu.

E agora encontrava-me ali, juntamente com Leet, os únicos presentes no funeral do ser mais puro que existira.

- Quer ajuda? - ofereci, incapaz de ficar quieta enquanto o homem suava pelo esforço de cavar um buraco grande e fundo o suficiente para colocar no seu interior um animal de porte tão grandioso.

- Não - Leet riu. - O seu pai despedir-me-ia se a deixasse sujar as mãos.

Aproximei-me um pouco mais do homem que estava na casa dos trinta anos e mordi o lábio inferior involuntariamente.

- É o mínimo que posso fazer. - afirmei, séria. - Se não tivesse insistido em levar Cassiopeia, talvez ela não morresse tão cedo.

Ele parou o que estava a fazer é fitou-me.

- O animal já era velho, menina Cristvin. Não iria durar muito mais.

- Mas também não morreria hoje - disse, teimosamente.

Leet revirou os olhos e limpou o suor que se acumulava na sua testa com a manga da sua camisa. Cansado, finalmente saiu do buraco que estivera a cavar e chamou o seu ajudante.

Poole era um rapaz novo que também cuidava do estábulo. A ele cabia-lhe cuidar da alimentação dos animais, bem como a limpeza propriamente dita do estábulo. Era aprendiz de Leet, que vivia perto dali, numa casinha que estava dentro dos domínios dos Cristvin.

Eles tentaram pegar no corpo de Cassiopeia mas ao que parecia, a julgar pelas suas caretas de esforço, ela era pesada demais.

Muito a custo, os homens moveram-na. Aproximei-me e peguei delicadamente na sua cabeça, percebendo-a tombada na direção do solo. Ao ver que eles definitivamente precisavam de ajuda para a carregar, deixei de agarrar o seu focinho e concentrei-me nas patas.

Com o máximo de delicadeza possível, a minha amiga de longa data foi devolvida à terra. Eu sentiria a sua falta.

Ao ver o corpo castanho ser engolido pela massa acastanhada, tive de conter um novo soluço.

A história estava prestes a repetir-se e o falecimento de Cassiopeia era o marco que assinalava o seu começo.

Olá :)
Pergunto-me se alguém ainda vai ler isto. O último capítulo desta história foi publicado dia 19 de Abril por isso compreendo que tenha perdido alguns leitores.

Irei tirar esta história do hiatus, uma vez que a inspiração finalmente me atingiu.

Obrigada e espero que gostem!

MORGANA - Reencarnação (EM PAUSA) Onde histórias criam vida. Descubra agora