PRIMEIRA CARTA,

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OU O MISTÉRIO DE COMO EU RESOLVI COMEÇAR UMA PORRA DE UM DIÁRIO  


Isso não é um diário.

Isso não é um diário.

Isso não é um diário.

Pode parecer um diário, ter cara de diário, soar como um diário, mas é apenas um compilado de cartas aleatórias que algum dia pode até vir a se tornar um livro póstumo, relatando toda a minha grandiosidade e talento para uma legião de fãs obcecados pela minha vida e morte como o maior compositor brasileiro — a típica atitude de um homem de 21 anos ambicioso e visionário.

Isso não é a porra de um diário.


XXX


Eu honestamente não sei como começar isso.

Passei a última meia hora olhando para os primeiros rabiscos e perguntando a quem eu estou querendo enganar. Então talvez eu deva iniciar tudo com... querido diário? Me parece infantil demais. Caro amigo imaginário? Acho que não. Filho da puta que vai ler a minha diarreia mental? Um pouco pesado.

A verdade é que eu nem gosto de escrever. Larissa costuma dizer que eu escrevo tão pouco que a minha letra parou no tempo e se parece com os garranchos de uma criança no primário; João riu tanto quando ela fez essa piada que emendou a gargalhada em um acesso de tosse e Pietra teve que distribuir socos pelas suas costas até que ele melhorasse. Não posso negar que fiquei observando os seus dedos compridos de pianista acariciarem a camiseta do meu melhor amigo, desejando ser o alvo daqueles carinhos, e não da piada.

Se eu fosse metade do homem que gostaria de ser, teria dito aquilo em voz alta. "Eu amo o jeito como a sua mão esmurra as costas do João. Eu amo como o seu cabelo fica cor de terra molhada quando saímos ao sol. Eu amo a maneira como os cantos da sua boca se curvam para baixo quando você está irritada. Eu amo a sua pele cor de café. Eu amo você."

Mas eu apenas ri. E mandei Larissa ir se foder.

Acho que eu estou fugindo um pouco do meu ponto inicial aqui.

A minha mãe acha que eu estou deprimido; na realidade, ela acredita piamente na minha depressão aguda desde o início da adolescência. "Você precisa passar por um psicólogo", ela berra aos quatro cantos da casa toda vez que me vê, "não é normal um garoto de 21 anos passar o dia inteiro dentro do quarto!" O meu pai finge que nada está acontecendo, "Georgia, ele só gosta de ficar sozinho", eu o ouço sussurrar na cozinha, os olhos grudados no celular, pensando em trabalho, trabalho, trabalho. Quando Andrei e Tatiana ainda moravam com a gente, as coisas costumavam ser mais fáceis, mas a minha irmã resolveu tentar repovoar o planeta Terra (está atualmente na terceira gravidez) e o meu irmão decidiu ficar rico e morar com a namorada celebridade, Isadora Mônaco, a guru da astrologia no mundo moderno.

Foi Isadora quem me sugeriu esse diário. Eu odeio a palavra "diário", como você deve ter percebido... eu não sou uma garota de 13 anos vivendo a primeira paixão. Sou um cara fodido da cabeça, que não consegue tomar qualquer decisão com a própria vida e tem problemas de relacionamento. "Você precisa colocar para fora", ela disse, em uma das muitas noites em que eu passei no apartamento moderninho deles em uma travessa da Avenida Paulista, enquanto Andrei cozinhava para nós três na cozinha ampla e hipster, "por que não escreve um blog?"

"Porque eu não quero que ninguém saiba o que eu estou pensando", eu sempre resmungava como resposta. "Porque eu não sou a Valentina".

Mas a ideia não sai da minha cabeça desde a primeira sugestão (e ela ainda insistiu depois da primeira vez) — é bem típico de Isadora sugerir algo que você odeia a princípio, mas que depois faz todo o sentido —, acompanhando-me como uma sombra daquilo que eu deveria estar fazendo para melhorar. Mas eu não quero começar um blog. Muito menos um diário. E eu quero dar um jeito de vomitar tudo o que eu sinto sem ter de lidar com um profissional rabiscando diagnósticos sobre a minha cabeça em um pedaço de papel.

Carta aos AstrosOnde histórias criam vida. Descubra agora