SEGUNDA CARTA,

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OU O MISTÉRIO DE COMO EU ME APAIXONEI PELA PIETRA


Não foi amor a primeira vista.

Acho que seria quase impossível, levando em consideração o fato de que somos amigos há 10 anos. Quando a conheci, remelenta, 11 anos, cabelo sempre preso, a pele escura e os olhos verdes, achei esquisito. Claro que achei, dava para contar nos dedos a quantidade de alunos negros no meu colégio elitista. Mas os meus pais eram progressistas na década de 90, moderninhos, engajados, militantes de esquerda, e eu abracei a causa. Os outros garotos, pelo contrário, partiram para o ataque. Brasileiro não é racista, né? A gente convive numa boa, até temos amigos que são, mas bastou uma garota negra invadir o espaço dos burgueses que se iniciou a revolução. O que mais irritou a quinta-série foi o fato de Pietra tirar as melhores notas, destacar-se nos esportes e não dar nem uma foda para o que eles pensavam ou deixavam de pensar; pelo menos era o que aparentava (mais tarde, descobrimos que ela chorou escondida no banheiro todos os dias durante um ano). "Como é que uma garota da cor da minha empregada doméstica tira mais nota do que eu?", era o que cruzava o pensamento de todos eles sempre que ela era a primeira a ser chamada para receber as provas, sinal de que havia gabaritado.

Graças a Larissa ter se tornado a melhor amiga de Pietra logo de cara e ser a minha melhor amiga desde o jardim de infância, nós nos tornamos um trio. Pietra era o cérebro, Larissa a cultura, eu o aluno que ia mal em tudo, mas que ficou estigmatizado como inteligente pelas minhas companhias.

Diga-me com quem andas, e te direi quem és.

Não éramos particularmente bonitos, Pietra com a testa projetada para frente, Larissa sempre brigando com a balança, eu com as cicatrizes no rosto de um acidente de carro sofrido aos oito anos. Mas tínhamos uma áurea de mistério, aqueles que não se ajustavam, os misftis. Quando João entrou em nossas vidas, com o sotaque forte e o cabelo comprido, completamos o circo de aberrações, no meio de todos os playboys e as patricinhas.

Era gostoso ser diferente.

A puberdade primeiro nos estragou, mas depois fez milagres. Eu cresci muitos centímetros, dediquei-me à natação e deixei o cabelo cor de milho crescer. João também cresceu (não tanto quanto eu), começou a surfar e ficou queimado de sol (característica que descobrimos ser um ímã para as mulheres). Larissa continua brigando com a balança até hoje, mas aprendeu a ressaltar a beleza do próprio corpo e se tornou tão histericamente interessante que ficava quase difícil não querer beijá-la na boca. E Pietra...

É engraçado dizer que foi do dia para a noite, mas é a mais pura verdade. Em uma tarde qualquer, estávamos deitados na minha cama, ouvindo Led Zeppelin, tomando vinho barato, fumando Marlboro Light e fantasiando sobre o futuro – eu contava a ela sobre as minhas últimas transas, ela confidenciava o seu amor por um garoto que eu não poderia saber o nome. No final de semana, os quatro mosqueteiros se encontraram, como era o costume, e eu senti vontade de vomitar; não conseguia conversar, desviava os olhos daquelas pedras verdes que ela tinha na cara e bebi tanto que acabei vomitando na planta favorita da minha mãe ao chegar em casa.

Nunca tinha me sentido daquela forma.

Foram 21 anos em total ignorância daquele sentimento. Eu pensava que gostar, se apaixonar, amar, era apenas um estado passageiro da excitação sexual, um sorriso fácil que chegava ao rosto antes do orgasmo. Repentinamente, fui inundado pela necessidade de prometer a minha vida àquela mulher, entregar tudo o que era meu, para que ela me desse ao menos alguns segundos da sua atenção.

Ela era linda de um jeito só dela. Elegante pelos anos no ballet, moderna com o penteado afro e as muitas mandalas que carregava pelo corpo, seja em tatuagem, seja em bijuterias, inteligente e dedicada à faculdade de odontologia, engajada em projetos sociais, sedutora com os olhos verdes e menina no jeito de se vestir. Antes, ela desfilava de calcinha e camiseta pelo meu quarto, recitando entusiasmada passagens dos novos livros que consumiam a sua vida, agora, eu não conseguia mais acompanhá-la com os olhos sem ser invadido por uma ânsia física de abraçá-la e exaltar o tipo de ser humano maravilhoso que ela havia se tornado.

Carta aos AstrosOnde histórias criam vida. Descubra agora