Título Curto.

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Não foi preciso dizer mais nada.
Houve um momento de silêncio incómodo, pontuado por uns estranhos grunhidos emitidos por Eça, que aparentava preparar-se para regurgitar uma bola de pêlo. Continuavam ambos imóveis, salvo algumas contrações faciais que faziam com que o formoso bigode do protagonista parecesse possuído pelo Capeta e os trejeitos de embaraço do jovem apaixonado.
Eça não aguentou. Atirou a cabeça para trás e deixou escapar um ruído que soava ao que acontecia 9 meses depois de um encontro amoroso entre uma risada histérica e o guincho duma cadelinha "griffon" ao ser atirava para dentro dum vulcão. Se as paredes pudessem, ter-se-iam borrado de susto. O gordo arregalou os olhos, cara de bolacha inundada de genuíno terror.
As gargalhadas rapidamente degeneraram em catarro de fumador, e com ele veio a consciência de que tinha feito o seu novo "amigo" sentir-se bastante desconfortável. Estaria ele a falar a sério?
- Peço imensa desculpa. - atalhou Eça, fazendo os possíveis por se recompor.
- ... e ela é escritora, um grande "crânio"... - balbuciou o mal-amado. A sua vozinha, a cara escarlate e todo aquele acanhamento doloroso e desnecessário inspiravam em Eça um profundo sentimento de desprezo. Desprezo e empatia.
- Quer, portanto, apresentar-me a essa rapariga, criando uma ilusão de relevância aos olhos da mesma? - completou Eça, de sobracelhas levantadas. Queria fazê-lo sofrer um pouco.
- É isso, m-m-mais ou menos. - gaguejou o rapaz, a estalar de vergonha.
Eça levou dois dedos finos e brancos, como lombrigas, ao seu anguloso queixo e fitou o sujeito com atenção queirosiana. Se ele, José Maria Eça de Queiroz, estivesse a passear pelo Chiado e visse uma barata, virada de barriga para o ar, debatendo-se em vão para se levantar e salvar a insignificante vida, o que é que faria?
Virá-la-ia cuidadosamente com a biqueira reluzente dos seus botins de couro envernizado. Mas porquê, se o pobre inseto é tão pequeno e tão efémero? Bem, digamos que estas pequenas boas ações funcionam como uma espécie de PPR contra estadias prolongadas no Inferno que ele, como bom católico (por meio da aposta de Pascal), teria que construir. E para além disso, ele já se tinha afeiçoado ao bicho e seria de uma indelicadeza obscena não o apoiar numa altura de desespero.
Refiro-me ao desconhecido, não à barata.
Eça pôs as mãos nos bolsos, embora as ceroulas geralmente não tenham bolsos, e começou a passear pelo quarto abarracado (o edifício era todo feito de esferovite, palitos usados e chapa de zinco, tendo ganho um prémio arquitetónico pelo uso de materiais reciclados). Enquanto andava, com um passo de deus em dia de folga, ia falando:
- Então, rapaz, já pensou na data do rendez-vouz?
- Do quê?
- Do encontro, menino, do encontro!
- Desculpe, não falo inglês. O encontro ficou combinado para... - o jovem cretino retirou do bolso algo parecido a um baralho de cartas. A sua cara iluminou-se com uma luz esbranquiçada e Eça pensou que o rapaz não poderia ter escolhido uma ocasião pior para (tentar) ler "Os Maias" - ...daqui a 5 horas.
- Cinco horas? Tudo bem, não tenho nada planeado. Onde tenciona levar-nos?
- Oh, nem me fale! É o sítio mais chic de toda a Lisboa! É fantástico! Os jornalistas do "High Life" estão sempre a louvá-lo! É... É...
- Você não tem nada planeado, pois não?
Mais um momento de silêncio digno do velório dum surdo-mudo.
- Eh... não. - acabou por confessar o reco.
Eça hesitou, quase chocado com o descaramento da criatura.
- Diga-me uma coisa: - principou ele, sentando-se na borda da cama com os caniços cruzados, o cotovelo apoiado num joelho e o queixo a descansar sobre o seu punho cerrado, como uma versão caricaturalmente cosmopolita do pensador de Rodin. O rapaz temia uma descompostura. Não a teve. - Sabe-me dizer se o Hotel Central ainda está aberto?
- O da Baixa? Sim.
- Então mande um dos seus criados fazer uma reserva para três, para as nove menos um quarto. - concluiu Eça, de forma autoritária. Se tinha que ir jantar com um imbecil e com uma criaturinha deslavada com o qual este se apaixonou, era para jantar bem. Tinha o umbigo praticamente colado às costas. A única comida que servem no Purgatório é pescada cozida. - ou então use a sua cigarreira mágica, visto que se pode fazer tudo com ela.
- O quê, o meu telefone? - perguntou o rapaz, acenando a sua "cigarreira". - Eu estava a pensar (!) ligar para lá, mas depois o senhor falou nisso do criado. Chic a valer!
"Então aquilo é um telefone...", pensou o Eça, lembrando o telefone que havia no seu escritório, no consulado português em Paris, no saudoso ano de 1900.
O nosso realizador de eventos levantou-se e dirigiu-se para a saída.
- Importa-se que eu me retire para um banho? Já agora, se me permite, recomendava que fizesse o mesmo. - disse, ao constatar que o odor pungente que empestava o quarto vinha incrivelmente do rapaz, e não da morgue.
- O uso dos lavabos tem uma tarifa acrescida. - advertiu o rapaz, melodicamente.
- Oiça, você quer que eu vá jantar consigo e com a demoiselle ou não?
- Portadores de bigode estão isentos!
- Esplêndido. - abonou Eça, com um sorrisinho de superioridade. E seguiu pelo corredor devoluto do hospital, em busca de uma banheira digna de acolher o seu corpito de ave pernalta.
O rapaz que permanece anónimo (but not for long) suspirou de alívio. O escritor não deixava de ter um certo charme improvável, mas era assustador para xuxu.
Foi então que o ouviu chamar, do fundo do corredor:
- Desculpe a indelicadeza, mas presumo que você tenha um nome, sobre o qual lamentavelmente não cheguei a indagar...
- Dâmaso, Dâmaso Salcede! - respondeu finalmente, deitando o focinho de fora da porta do quarto e resolvendo o mistério com um só grito. Não se grita em hospitais, seu mal-criado.
- Ah. - murmurou Eça, com as sobracelhas a formarem um acento circunflexo na cara. Estava tudo explicado.

O Lodaçal Terminado, Reeditado E 10000 Vezes Mais Mágico!Onde histórias criam vida. Descubra agora