Um Tropeção...

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- Très chic. - murmurou Eça, assombrado. Era sem dúvida a mais bela mulher que alguma vez tinha visto de um ponto anormalmente elevado.
Assumiu que ela subiria para jantar, por isso enquanto a esplêndida mulher dava as últimas recomendações ao seu esplêndido arrumador de carros moçambicano, Eça correra para o espelho mais próximo, penteando-se com os dedos, ajeitando o bigode, limpando o monóculo, enfim: fazendo os possíveis para parecer que tinha nascido duma concha, como a Vénus do Botticeli (se esta tivesse sido criada por Raphael Bordallo Pinheiro).
Estava a fazer o sprint final em direção a uma poltrona Luís XIV quando sentiu um dos seus pés empancar nalguma coisa: oh! D. José Maria, o avisado, era uma tábua do soalho mal pregada!
À velocidade em que seguia, não tinha hipótese. Fechou os olhos e preparou-se para focinhar no tabriz verde e dourado.
Nem pó. O nosso acidentado achou-se suspenso a meio da trajetória de impacto, com os dentes todos na sua posição original. Como? Um par de braços segurávam-no pelas axilas, como se faz às gatas.
Eça ergueu-se com cautela, como um castelo de cartas animado e tomou, sem se virar, as mãos desconhecidas que o tinham salvo de intimidades pouco desejadas com o pavimento.
Eram pálidas e longas, com dedos vermiformes, e a avaliar pela suavidade da pele, femininas.
Girou sobre os calcanhares. Tinha razão: as mãos pertenciam a uma mulher com um rosto fino e ossudo, cor de leite frio, com um nariz sefárdico no meio, emoldurado por cabelos escuros, de reflexos fúlvidos, num corte que fazia a sua face ainda mais longa, equina e andrógina. Mas o que prendeu a atenção do escritor foram (como não podia deixar de ser) os olhinhos negros da rapariga, com a sua centelha de génio endiabrado.
- Obrigado, madame. - disse ele, sentindo o sangue a tomar a face, a trepar às orelhas.
- Teve bastante sorte: se eu tivesse ficado à espera da minha boleia, ter-se-ia magoado imenso.
Eça engoliu em seco. Seria ela...
- Perdoe a minha intromissão, mas chegou ao hotel à quanto tempo?
- À cerca de 5 minutos.
Fez as contas. Como é que ela conseguiu subir as escadas tão depressa? Ter-se-ia ele atrasado a compor a toilette? Meu Deus, parecia tão bela, vista de cima... Ou então o narrador decidiu referenciar "Os Maias" com aquela treta da esplêndida mulher. A natureza humana é vária, tenho dito.
Ela sorriu e apontou para um ponto qualquer à retaguarda do escritor. Ele virou-se e viu o seu chapéu, abandonado no chão como um pau de cabeleira.
Eça fez um gesto afirmativo com a cabeça e acocorou-se para apanhar o dito-cujo, dando inadvertidamente algum tempo para o seu anjo da guarda o observar melhor: mas que raio de homem é este que corre pelo Hotel Central de fraque, cartola e monóculo? O único portador de cartola que ela alguma vez conhecera fora um tio galego, que era ilusionista, que não via desde que La Guardia o tinha metido dentro.
Limpou superficialmente o pó do chapéu e pousou-o numa mesa de café de madeira negra. Tomou iniciativa:
- Creio que ainda não me apresentei...
- E crê bem, porque de facto ainda não se apresentou... - disse ela, afastando indolentemente uma madeixa de cabelo que se tinha aventurado para a testa.
Foi a vez de Eça a apanhar em plena queda: tomou-lhe a mão que retomava à sua posição original, ao lado do corpito esguio, levou-a aos lábios. As sobracelhas da mulher subiram até as raízes dos cabelos. Espanto, lisonjeio, cócegas do bigode:
- José Maria. - disse, baixando delicadamente a sua mão, e por consequência a mão dela.
- Maria José.
Tal semelhança de nomes só pode ser bom sinal. Ou não.
De repente, sentiu-se por toda a sala um cheiro caraterístico a matadouro.
- Ora viva, sô Eça. Vejo que você já conhece a minha amiga...
Era Dâmaso Salcede, acabado de chegar de bicicleta.

O Lodaçal Terminado, Reeditado E 10000 Vezes Mais Mágico!Onde histórias criam vida. Descubra agora