15. Helena de Moura

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SEGUNDA PARTE


ARLINDO AGIU igual Labão, o personagem da Bíblia que obrigou o pastor Jacó a se casar com Lia, sua filha mais velha, embora o rapaz gostasse de Raquel, a mais nova.


Eu não achava aquilo direito, mas em nossa casa a palavra final era sempre dele. E mais uma vez eu tive que concordar e ajudar a cumprir sua vontade de coronel. No meu tempo era desse jeito. Se o homem mandava, a mulher e os filhos simplesmente obedeciam. E ponto final.


Leôncio Duarte chegou à matriz do Rosário metido num jaquetão preto de casimira. Havia aparado a barba e seus cabelos avermelhados reluziam de tanta Glostora. Chegou no nosso carro, pois o Arlindo mandara buscá-lo na pensão, na hora marcada.


Apesar da chuva fina, a igreja estava cheia de gente. Morro do Calvário em peso queria ver o casório e nem teria sido necessário distribuir os convites. No interior era assim mesmo, tudo se transformava numa grande novidade.


Lá estava o tropeiro, ansioso por desposar Gláucia Maria que, na sua imaginação, teria sido a noiva mais bonita do mundo. Teria, mas não foi.


Quando padre Herculano deu início à cerimônia, quem surgiu na porta principal de véu, grinalda e braço dado com o pai foi Maria das Dores.


Comadre Cremilda, que sempre fazia a Verônica nas procissões do encontro, entoou uma Ave Maria à capela e sua voz arrepiou até os anjos do vitral.


Todo mundo ficou de pé, com a atenção voltada para a noiva. Somente eu permaneci de frente para o altar, sentada na cadeira de rodas. Encarei o pobre noivo, que estava pálido de surpresa. De olhos arregalados, ele tremulou um músculo na face direita. Provavelmente, não acreditava no que estava acontecendo.


Quando Arlindo parou diante do altar para entregar-lhe a mão de Zizinha, o rapaz balbuciou alguma coisa, com certeza tentando desfazer o mall-entendido. Arlindo não permitiu questionamentos.


Eu avisei, seu moço, a mais velha tem que casar primeiro, pois já tá com o jenipapo maduro, ouvi ele dizer.


Mas eu..., gaguejou o noivo, sendo logo interrompido.


Se o moço pensa em fazer desfeita, melhor não ir em frente, retrucou Arlindo, mostrando a garrucha Laporte .380 presa ao cinto, sob o paletó de linho branco. Em vez de casamento, podemos ter um velório, advertiu.


Um trovão fez vibrar a terra nessa hora e padre Herculano pigarreou, desconcertado. Antes que dissesse alguma coisa, Arlindo ordenou a ele que prosseguisse a cerimônia sem exagerar no sermão.


Leôncio não teve outra saída, senão dizer sim quando perguntado pelo vigário se era de sua livre e expontânea vontade se casar com Maria das Dores. Depois da bênção das alianças, tratou de deixar o altar apressadamente, quase arrastando a esposa pelo braço.


Ao saírem da igreja, foram surpreendidos na praça por Arlindo e dois jagunços, que os fizeram entrar no Ford sob aplausos e vivas de convidados que já estavam a postos para jogar-lhes arroz. Naquela empurra-empurra, Zizinha deixou cair o buquê numa poça de lama.


Nesse momento, a chuva já havia estiado e o Cruzeiro do Sul brilhava no céu, numa fresta deixada pelas nuvens.


Arlindo se sentou ao lado do motorista e mandou que ele seguisse para a fazenda. Só uma hora depois é que o carro veio buscar Gláucia Maria, padre Herculano e eu para o arrasta-pé que atravessaria a noite.

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