26. Galeno Valadares

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TERCEIRA PARTE


ENQUANTO EU permanecia em Morro do Calvário, prosseguindo sem sucesso com as investigações das duas mortes ocorridas há três anos, a vida política seguia seu curso em outras partes do país.


Assistindo ao noticiário na televisão preto e branco da farmácia, tomei conhecimento de que um jornalista detido para interrogatório havia sido encontrado morto numa cela do Exército, em São Paulo.


A versão oficial falava em suicídio, mas tudo levava a crer que o preso havia sido torturado até a morte, como acontecera três meses antes com um ex-oficial da polícia militar acusado de subversão.


Aonde é que nós vamos parar?, exclamou Juscelino Baptista assim que o intervalo comercial interrompeu o telejornal.


Estávamos tomando cerveja no balcão, ao cair da noite, como costumávamos fazer pelo menos uma vez por semana para matar o tempo.


Justamente por criticar ações como essa foi que acabei sendo transferido para este fim de mundo, suspirei. É um milagre que tenham noticiado isso, pois a imprensa continua sob censura.


Nesse momento, padre Wenceslau adentrou o recinto, disse boa noite e pediu a Juscelino que lhe aplicasse uma injeção contra gripe. Estava rouco e febril, com a garganta inflamada e o corpo dolorido, explicou.


O farmacêutico sugeriu-lhe uma anticatarral, que era tiro e queda nesses casos e, enquanto preparava o medicamento, o noticiário voltou com mais informações sobre a morte de Vladimir Herzog.


Judeu!, exclamou o vigário de olho na TV, sem disfarçar o tom de desprezo pela raça que na certa considerava inferior.


Isso faz alguma diferença?, perguntei, com o intuito de testá-lo.


Já que se trata de uma subversivo, eu achar que não, disse ele, tropeçando no sotaque.


Tomei mais um gole de cerveja e prossegui com a provocação, dizendo que um sacerdote não deveria discriminar um filho de Deus.


Foram os judeus que crucificaram o Cristo, ele disparou.


Estranho, retruquei. Sempre pensei que fossem os romanos.


Antes que o padre contra-argumentasse, Juscelino veio lá de dentro trazendo uma seringa e um pequeno chumaço de algodão embebido em álcool. O vigário suspendeu a manga esquerda da batina até o alto do braço, que era branco feito cera.


O noticiário mudou de assunto e eu virei mais cerveja no copo. Juscelino terminou o serviço e, enquanto esfregava o algodão no músculo ofendido pela agulha, o vigário mandou que ele recebesse a conta no dia seguinte, na casa paroquial. Em seguida, saiu da farmácia pisando duro, ligeiramente manco e sem se despedir.


Sujeito mais arrogante, exclamei.


É mais o jeito dele, Juscelino se desculpou e foi logo dizendo que padre Wenceslau havia chegado a Morro do Calvário quase 30 anos atrás, para substituir padre Herculano nas funções de pároco. Não demorou a fazer amizade com Siá Zizinha, que padecia um bocado para cuidar do filho doente num lugar sem recursos como aquele.


Eu já conhecia a história do antigo vigário e de como ele havia sido morto. Sorvi a espuma da cerveja e comentei que achava estranho o fato de o novo padre ter se tornado amigo justamente da filha do homem que encomendara a morte de seu antecessor.


Mas disso ela não teve culpa, Juscelino argumentou.


Eu sei, mas mesmo assim acho esquisita essa amizade entre os dois, respondi, limpando a boca nas costas da mão.

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