TERCEIRA PARTE
A NOTÍCIA DO fim da guerra chegou pelo rádio, alguns dias depois do meu reencontro com Leôncio e Zizinha. Morro do Calvário fez festa para comemorar e teve gente que até soltou foguetes. Num raro momento de lucidez, o pai praguejou contra o governo, perguntando o que faríamos agora sem o Hilário?
Mais alguns dias se passaram até que um oficial do Exército veio de jipe à nossa casa, trazendo consigo uma medalha de honra numa fita verde e amarela. Meu irmão agora era considerado herói de guerra e aquela seria sua condecoração por ter desaparecido no campo de batalha, lutando pela pátria e pela liberdade dos povos.
O pai a recebeu sem dizer nada, pois estava novamente perdido em devaneios. Depois que o militar foi embora, ele a pendurou no pescoço como se tivesse sido condecorado.
Dois meses depois, na estação das águas, ali por volta das sete, estranhei o silêncio em seu quarto e fui até lá, pois já passava da hora em que ele costumava se levantar.
Levei um susto ao constatar que estava gelado e com as juntas enrijecidas. A morte o havia surpreendido à noite, provavelmente durante o sono, pois seu rosto muito branco e enrugado tinha feições tranqüilas como se ainda estivesse dormindo.
Mandei um empregado ir até a fazenda avisar mamãe, Leôncio e Zizinha, e eles vieram depressa para o velório.
Naquela noite, enquanto as duas rezavam o terço em redor do caixão e em companhia de outras beatas, conduzi Leôncio pela mão até a despensa, nos fundos da casa, e entreguei-me a ele por inteira, em cima das sacas de mantimento.
A chuva fustigava as telhas feitas há muito tempo em cochas de escravos. O ruído das bátegas e o som do vento e dos trovões abafaram nossos gemidos e suspiros.
Era como se a morte de meu pai tivesse libertado o sentimento que, por força de sua vontade, estivera represado no fundo de nossas almas.
O enterro foi realizado na manhã seguinte, debaixo de chuva e sem as bênçãos da igreja. O bispo de São Roque ainda não havia designado um vigário para o lugar de padre Herculano.
O caixão foi depositado na sepultura inundada e recoberto de lama pelos coveiros. Pensei no barro usado por Deus para moldar o primeiro homem, feito à sua imagem e semelhança para habitar o paraíso.