2-Algumas tintas acabaram

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Na mesma hora ouvi a buzina de um carro. Ainda perplexa, me virei e saí da transe que Narissa me deixara. Era o Citroën C3 2015 preto dos meus pais. As janelas estavam arregaladas e mamãe, com o braço para fora, acenava para mim para eu entrar no carro. Mesmo de considerável distância, dava para ver seu sorriso brilhante. Eu permaneci parada por alguns instantes, quando mamãe desceu e saiu correndo em minha direção.
Ela estava descalça, seus pés macios deixando pegadas sobre as minhas na areia. Dava para sentir sua felicidade. Com os braços abertos, me beijou na bochecha e bagunçou ainda mais meu cabelo desalinhado pelo vento.
-Vamos, querida, eu e o papai temos uma notícia maravilhosa para você.
Ela me deixou curiosa. Sua alegria repentina me deixou ansiosa para chegar em casa. Não sei porque, pois no fundo eu sabia o que era. Mamãe a uns meses,uns três para ser mais precisa, começou a vomitar constantemente. Não tinha disposição para fazer nada. Ela, que era sempre a alegria em pessoa, começou a passar mais dias no quarto. Só tomando remédios para dor e enjôo. Quando, enfim, percebeu que sua menstruação não havia chegado. Pela segunda vez. Eu estava preocupada com ela. Como todos que a conheciam. Era claro que iríamos ter mais um membro na família.
Eu entrei no banco de trás do carro. Mamãe ligou o rádio. Era uma das poucas vezes que tocava uma música nacional naquela emissora. Tocava Forasteiro, do Thiago Pethit.Eu sinceramente, nunca ouvira algo que combinava tanto com os dois. Eu conseguia ouvir a voz do papai, cantando o refrão enquanto eu cochilava no banco.
Entrei, limpei os pés sujos de areia no tapete violeta de casa, e me joguei no sofá.
Mamãe veio com seu sorriso enorme e sentou-se na poltrona da esquerda. E papai veio com seu comum sorriso de canto de boca, e sentou-se na da direita.
Mamãe pegou minha mão delicadamente, e a colocou em cima de sua barriga. Já estava um pouco inchada. Ela derramou algumas lágrimas. Eles sempre quiseram ter dois filhos, e combinaram isso desde a adolescência problemática dos dois.
Mamãe era a mais bonita, e a mais desejada de seu grupo de amigos. A que faltava aulas para sair com gente que mal conhecia, seja na praia, na balada ou em qualquer lugar do mundo. A que pedia para o conhecido de seu amigo a tatuar antes dos dezoito, a poeta que não havia se descoberto, a violência das ondas do mar. Papai também era problemático. Mas não quanto a mamãe. Faltava algumas aulas para escrever inúmeros livros que pudesse publicar no futuro. Ou tocar seu velho violão herdado cheio de desenhos coloridos feito por gente antiga. Tirava sempre boas notas, e sonhava acordado. Eles se conheciam desde os quatorze anos. Com uma paixão platônica secreta nas linhas do diário por muito tempo. Papai disse que já teve uma namorada, que era na verdade só uma amiga próxima de mais, sem tanto amor assim. E mamãe contava sempre dos seus inúmeros namorados e ficantes do ensino médio para papai ficar enciumado. Mas que ela sempre o percebera, sempre fora perdidamente apaixonada pela sua voz aveludada e por seus romances.
Até que a família dela conheceu a família dele através do trabalho. Ela ia sempre na casa dele, e revelava algum segredo.Papai me contou o último segredo que ela o revelou. Com um cochicho e um beijo, ela se declarou debaixo da sacada em uma noite chuvosa. E por aí vai. O amor nunca acabou.
-não pensamos num nome ainda- mamãe suspirou.
-Marina e André. Ou Marina e Amora. Esqueceu? -papai levantou-se e beijou minha testa.
Ela riu.
-André e Amora são bons nomes. -Soltei.
-André e Amora Castro. -Disse ela, com a voz rouca bocejando.
Abri um sorriso, beijei ambos na bochecha e fui para meu quarto.
Eu não consegui pensar em outra coisa a não ser em Nerissa. Sabe, ela não era qualquer menina. Eu sentia isso. Catei uma tela branca no quarto de meu pai, e roubei os pincéis e as tintas dele. Comecei a traçar com um lápis que estava em cima da minha cômoda. Eu não pensei em nenhuma prévia, só fui fazendo o que me deu na cabeça. Eu havia acabado com a tinta preta e azul, mas não me preocupei. Minha mente não estava como todo dia. Pincelei e pincelei, até notar que meu suéter manchara todo. E, de alguma forma, ficou melhor do que era. Ouvi batidas rápidas na porta de casa. Eu estava com um pouco de preguiça para levantar e ir abrir, mas eu fui.
-Marina, cheguei a tempo?-Gabriel disse ofegante com um pouco de suor escorrendo na testa.
Eu me senti um pouco culpada. Lembrei na hora que eu tinha prometido à Gabriel que iríamos à praia naquela manhã. Para ser sincera, nem me lembrava do dia da semana.
-Ah... Gabriel, desculpe. -Disse para ele, começando a me situar na situação e esquecer a misteriosa menina de cabelos negros.
Ele fez uma cara de choro, mas logo abriu um sorriso de canto de boca.
-Quer saber...-disse a ele o puxando pelo braço -vamos sim.
Eu de alguma forma me sentiria melhor se o levasse à praia.
No primeiro passo que demos para fora de casa, ouvi uma trovoada. Começou a chuviscar. Me virei para ele, que estava um pouco incrédulo, e fiz uma cara de quem chupou limão.
Nossa manhã se resumiu em filmes e séries. Sentados em cima de um colchão velho coberto com um edredom macio e uma pilha de travesseiros, no chão. Em cima da minha cômoda estava cheio de papéis de doces e refrigerantes. Comíamos dois potes grandes de pipoca doce, enquanto assistíamos a um filme de ficção científica. Ele ainda não havia reparado no meu quadro, e eu ainda não tinha contando para ele sobre o ocorrido.
-Gabriel...-Disse á ele roubando um pouco de sua pipoca.-Voce acredita em sereias?
Ele riu um pouco da minha pergunta fora de hora.
-Isso não existe. -Ele riu ainda mais, roubando um pouco de minha pipoca. Gabriel estava descontraído, mas senti uma preocupação vinda dele.
Eu me senti um pouco infantil por levar a aparição dela para o irreal demais. Ela poderia ser alguma garota que passava por ali naquela hora, e ter saído rápido. Bom, eu desconfiava tanto pois ela tinha um cheiro refrescante de algas marinhas, e tinha um cabelo tão sedoso e tão longo que era quase inacreditável. Vá, me deixe viajar.
-É que... eu vi uma menina estranha. -Eu disse, deitando com a cabeça em cima da coxa dele.
-Tem muita menina estranha por aqui.- Gabriel devolveu seus óculos pretos aos olhos, já que haviam caído em seu nariz.
Percebi que referiu-se a Luiza, da nossa classe. A menina tinha cabelos descoloridos vibrantes e um nariz tão pontudo quanto as suas enormes unhas do pé. Ela ria de todo mundo, não era um exemplo para ninguém, se achava a maioral mas não conseguia nem falar direito com um adulto sem gaguejar.
Respirei fundo, levantei-me e pausei o filme.
-Não era como Luiza Albuquerque, era...
-Eu falava de você. -Gabriel começou a rir.
-Leve a sério!
Gabriel parou, me encarou, e eu disse o que havia acontecido. Ele no mesmo momento disse:
-Marina, está se drogando tão nova?
Eu havia me irritado um pouco com ele, mas deixei para lá, despausei o filme e continuamos assistindo.
Um pouco perto do começo da tarde, Gabriel teve que voltar para a casa porque tinha que dar banho em seu cachorro vira-lata que achara na rua à umas semanas. O cão era preto com manchas brancas do focinho ao rabo. ele parecia um gambá enorme.
Antes de sair da minha casa, Gabriel tirou de seu bolso um saco cheio de balas, as maiores que já vi, com cor verde e jogou para mim. O material da embalagem era reluzente e um pouco colorido. Na embalagem estava escrito com uma letra bem ilegível, Escamas.
Ele pareceu um pouco sério. Carregou meu guarda-chuva azul na mão esquerda e seguiu para a sua casa, que ficava a duas ruas da minha.

NerissaOnde histórias criam vida. Descubra agora