Parte I - Capítulo I.a

326 46 25
                                    



Rei Augusto Dante saiu de seus aposentos enrolado em um casaco lanoso com a águia dourada estendida da família Dante bordada às costas. Estava sozinho, pois, como sempre, a rainha havia se levantado mais cedo para rezar na capela do palácio.

Dez anos desde o exílio do príncipe e poucas foram as manhãs que Augusto acordasse com o lado da rainha ainda quente na cama. Às vezes Lívia parecia passar mais tempo com seu Deus do que com o próprio marido, pensava ele.

Naquela clara manhã de outono, o vento soprava do mar e pedia por um gasalho mais grosso. Estava bem acostumado, pois quase o ano todo o lar da família real tiberiana estava sujeito a constantes ventanias. O palácio fortificado erguia-se sobre o mais alto morro da capital, com vista para a Baía Verde.

Atrás das altas muralhas, o Palácio Real tinha a opulência dos templos antigos, coberto de mármore branco, preto e rosa. Nada fora poupado nos quesitos luxo e suntuosidade. Jardins impecáveis da área externa contavam com estátuas e fontes de água cristalina, enquanto no interior do prédio o preto e o dourado se uniam de modo harmonioso; as cores do brasão da família Dante.

Seus corredores e salões tinham colunas de mármore negro delicadamente entalhadas, cornijas rebuscadas e cobertas de ouro, cortinas aveludadas com detalhes em brocado de ouro, sem falar nos intrincados mosaicos de ouro e pedras preciosas. As paredes das dezenas de aposentos eram revestidas por tapeçarias, aquarelas e quadros a óleo.

E foi à frente de uma dessas pinturas que o rei encontrou a sua rainha. Lívia tinha um ar de reminiscência e esfregava entre os dedos o pingente de ouro com o Sol Radiante de Ravi. A mulher na casa dos sessenta anos trazia na pele e nos cabelos as marcas da idade. A cabeleira ruiva havia perdido o brilho e a tez antes formosa estava marcada por manchas e rugas.

Nada daquilo transparecia aos olhos de Augusto, enlevado por um amor que transcendia tempo e idade. Sua querida Lívia continuava tão ou mais bela quanto retrava o quadro na parede. A pintura a óleo de traços precisos trazia o rei e a rainha em tronos, ladeados pela princesa Flávia e pelo príncipe César, de pé à direita do pai e à esquerda da mãe. A paternidade dos irmãos era flagrante; ambos tinham o nariz ossudo tipicamente tiberiano do rei.

‒ Sagrado Senhor, como estou velha! ‒ resmungou Lívia.

‒ Fruta madura é mais saborosa ‒ disse o rei, abraçando-a pela cintura.

‒ Madura? Estou mais para fruta passada, isso sim ‒ ela replicou, fazendo-o rir.

Beijaram-se levemente nos lábios e depois se viraram novamente para o quadro. A pintura havia sido comissionada para comemorar a coroação de Augusto, trigésimo rei tiberiano da dinastia Dante. Na época, os príncipes tinham quinze e dezesseis anos, e o artista fora muito feliz em captar com pinceladas toda a sagacidade de César e a alegria de Flávia.

Augusto, por sua vez, tinha um rosto comprido e régio e uma cabeleira castanha que mais tarde o tempo reivindicaria. O peito, um dia, fora amplo, com os braços fortes de um guerreiro campeão. Mais de vinte anos depois, estava quase irreconhecível, com a barriga redonda e uma papada protuberante.

Desde a coroação, tanto o rei como a rainha haviam perdido mais do que cabelos e a silhueta. A razão para a melancolia de Lívia era outra. Haviam perdido os dois únicos filhos, um para o exílio e o outro para Deus. Fazia dezoito anos da morte de Flávia e dez da partida de César.

Lívia suspirou.

‒ Traga meu filho de volta, Augusto. Flávia nunca mais voltará, mas César pode.

‒ Estou trabalhando nisso... ‒ comentou o rei, desconversando.

Dez anos pareciam pouco, pensava Augusto. A revolta das províncias do Sul havia terminado e as feridas no reino cicatrizado, mas os malfeitos eram difíceis de serem esquecidos. Especialmente para o rei.

César havia partido para o exílio com duras palavras, e o pai as lembrava como se tivesse sido ontem. Lívia parecia ter esquecido, ou pior, não se importava. Implorava pelo retorno do único filho. Aquela história havia apenas começado, dissera o príncipe, e por dez anos a ameaça pairara como uma nuvem negra sobre a cabeça do rei.

Depois de Lívia, foi Augusto quem suspirou.

‒ Lembra como era difícil tirar Flávia da cama numa manhã como essa? – comentou ela.

‒ Lembro do dia em que César colocou um sapo na cama dela ‒ disse o rei.

‒ Você só se lembra das coisas ruins ‒ reclamou Lívia.

‒ Difícil esquecer a gritaria. Levei a manhã inteira para acalmá-la.

Rei Augusto Dante nunca fora conhecido pelo brilho social, mas sim pela retidão moral e dedicação ao dever. Tinha a convicção de que o caráter de qualquer pessoa podia ser moldado pela educação e que era possível alcançar a perfeição por meio do trabalho árduo. Acreditava piamente que o bem-estar do mundo dependia da boa educação dos reis e fora assim que criara os dois filhos. Flávia sempre fora uma menina inteligente, curiosa e esforçada, ao passo que César fizera do desafio ao rigor do pai a razão de viver. Para ele, parecia mais importante descobrir com quantas palmadas se esquentava o seu traseiro.

‒ Sinto tanto a falta deles. ‒ Lívia enxugou a lágrima. ‒ Minha coelhinha.

Os dois lembraram com carinho a felicidade da princesa Flávia no dia em que anunciaram o noivado. Não cabia dentro de si. O noivo era o filho mais velho de ninguém menos que o próprio conde Sila Martino, bom e velho amigo da coroa.

Infelizmente, aquele havia sido o casamento mais curto e trágico que Augusto conhecera.

O que começara em júbilo, repleto de amor e esperança, logo se transformara em tristeza e dor. Dois meses após a celebração tivera a notícia de que seria avô e, menos de uma semana depois, o genro faleceu em uma tormenta no Mar do Norte. Uma alma grandiosa e um dos capitães mais promissores da marinha tiberiana. Flávia jamais se recuperou devidamente, e todos na corte disseram que a depressão afetaria a gravidez.

De alguma forma afetara, pois a pobre viúva faleceu no parto.

Olhando para trás, Augusto podia ver que a filha simplesmente se entregara. Dar à luz fora sua derradeira realização e, se não fosse pelo bebê, muito possivelmente teria falecido meses antes quando as águas do mar levaram o marido.

A poesia tiberiana contava sobre histórias como a deles. Amor e tragédia tinham o péssimo hábito de caminhar de mãos dadas, tão unidos quanto a palha entrelaçada de um cesto. Somente alguém que jamais amou de verdade não a entenderia.

Augusto ficara devastado, mas encontrou consolo no lindo neto que Flávia lhes deixara. Lúcio, a luz que retornava ao seio da família Dante após meses de escuridão e luto.

Lúcio tinha a vivacidade e alegria da mãe, o mesmo brilho jovial que contagiava a todos a sua volta, dos servos do palácio aos tutores. Augusto continuava acreditando no poder transformador da educação, ainda que a rigidez não fosse a mesma, com temor de que pudesse despertar a mesma rebeldia empedernida que suscitara em César.

Para a felicidade dele, Lúcio provava-se um prodígio de mente rápida e criativa, com um gosto especial pelos livros de história antiga, assim como fora a mãe Flávia. Havia tanto dela no menino que o avô às vezes se pegava lembrando da filha e os olhos se enchiam d'água.

Naquela gelada manhã, não foi diferente e o rei piscou uma lágrima.

‒ A primeira vez que nosso Lúcio viu esse quadro ele me perguntou quem era o cabeludo ao lado da vovó ‒ falou Augusto, com uma bufada. ‒ Disse que era eu, ora essa, e ele não acreditou! Protestei se por acaso ele achava que eu já tinha nascido careca e o safado me respondeu: não nascemos todos?

Augusto riu consigo mesmo, enxugando a lágrima insistente.

Lívia sequer insinuou um sorriso indulgente.


Passagem para a Escuridão - Livro IOnde histórias criam vida. Descubra agora