PRÓLOGO

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Príncipe Lúcio Dante revirava-se na cama. Uma profusão de suor encharcava suas roupas. Estava deitado em seu colchão confortável de plumas, embaixo de lençóis frescos de seda. Reparou que tinha a cabeça enfaixada e hematomas doloridos pelo corpo. Era um menino magricela de joelhos ossudos e cabelos pretos como penas de corvo.

Lúcio acordou de chofre e reconheceu de imediato o seu quarto no Palácio Real da Tibéria. Aos poucos, acalmou o coração acelerado e a respiração ofegante. Sem perceber, começou a entoar uma reza pedindo a proteção de Ravi, qualquer coisa para afastar o pesadelo da cabeça.

Ao menos estava de volta à segurança do palácio. Percebeu seu cachorrinho filhote dormindo placidamente sobre o tapete como uma bolinha de pelos pretos. Os livros sobre a mesa de estudos e os bonequinhos de chumbo espalhados pelo chão permaneciam assim como os deixara antes de ser arrastado pelo tio para aquela estúpida empreitada ao sul da ilha.

A pequena vila ficava a mais de um dia de viagem da capital. Agora estava em segurança. Ninguém poderia machucá-lo atrás daquelas paredes, dizia a si mesmo. Nem camponeses malucos, nem as sombras de seus pesadelos.

Lúcio se esforçou para lembrar como havia chegado ao quarto, mas as lembranças estavam nubladas. Sua memória começava a clarear e desejou que não tivesse. Devia ter imaginado que nada de bom poderia ter vindo do convite de César para acompanhá-lo em uma viagem. Os problemas pareciam ter o péssimo hábito de seguir o tio feito moscas ao mel.

A noite estava seca e quente; perfeita para imolar adoradores das trevas, dissera César.

­­‒ E você precisa ver, sobrinho ‒ insistia ele, segurando-o pelo braço com demasiada força.

Príncipe César Dante sorriu, muito satisfeito consigo mesmo. Trajava cota de malha sob vestes luxuosas e pretas que traziam bordado no peito o emblema da águia dourada estendida da família real Dante. Era um rapaz de vinte e poucos anos, de corpo esbelto, rosto fino e cabelos pretos de breu. O olhar por demais cativante era claro, profundo e expressivo, e mirava os prisioneiros.

Guerreiros de cota de malha puxavam e empurravam a fila, cada um com a mão atada ao seguinte; um senhor de cabelos brancos, duas mulheres e mais dois meninos que se debulhavam em prantos. Em meio aos gritos da multidão, um a um, eles eram amarrados em estacas firmes entre as toras da pira erguida no centro da praça.

‒ Olhe para eles, sobrinho. São todos hereges e precisam ser purificados pelo fogo.

O povo que presenciava a execução não parecia compartilhar da ideia do príncipe. O empurra-empurra pressionava a linha dos guardas. De repente, um homem se libertou do cordão de isolamento e partiu ensandecido para cima dele. Mesmo desarmado, o camponês impressionava pelo tamanho descomunal. Era tão grande quanto um cavalo e tinha os braços grossos como troncos de árvores.

Lúcio gritou e se agarrou ao tio, que simplesmente o jogou na frente do agressor. O sujeito não tomou conhecimento e atropelou o menino. César se atrapalhou ao tentar sacar a espada e no tumulto também caiu sobre os paralelepípedos da praça. A lança de um soldado abateu o homenzarrão pelas costas, que desabou sem vida sobre o príncipe.

Aquela era a última coisa de que Lúcio se recordava. Isso e os gritos excruciantes da família condenada às chamas. Eram adoradores de demônios, servos de Arkmal, Senhor das Trevas, dissera o tio César. Eram todos eles hereges de sangue ruim, seguidores da escuridão, pecadores, infiéis, mentirosos e traidores, incluindo as crianças, César afirmara sem titubear, como se qualquer dos crimes pudesse justificar aquele espetáculo de horror.

Lúcio enxugou os olhos marejados. A lareira acesa no quarto estalava como a fogueira de seu pesadelo e o cheiro da fumaça era enjoativo. As sombras se projetavam e dançavam ao tremular do fogo.

Passagem para a Escuridão - Livro IOnde histórias criam vida. Descubra agora