Capítulo 12

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12

O dia enegreceu; era noite já.

O pajé tornara à cabana; sopesando de novo a grossa laje, fechou com ela a boca do antro. Caubi chegara também da

grande taba, onde com seus irmãos guerreiros se recolhera depois que bateram a floresta, em busca do inimigo pitiguara.

No meio da cabana, entre as redes armadas em quadro, estendeu Iracema a esteira da carnaúba, e sobre ela serviu os

restos da caça, e a provisão de vinhos da última lua. Só o guerreiro tabajara achou sabor na ceia, porque o fel do coração que

a tristeza espreme não amargava seu lábio.

O pajé bebia no cachimbo o fumo sagrado de Tupã que lhe enchia as arcas do peito; o estrangeiro respirava ar às

golfadas para refrescar-lhe o sangue efervescente; a virgem destilava sua alma como o mel de um favo, nos crebros soluços

que lhe estalavam entre os lábios trêmulos.

Já partiu Caubi para a grande taba; o pajé traga as baforadas do fumo, que prepara o mistério do sagrado rito.

Levanta-se no ressono da noite um grito vibrante, que remonta ao céu.

Martim ergue a fronte e inclina o ouvido. Outro clamor semelhante ressoa. O guerreiro murmura, que o ouça a virgem

e só ela:

— Escutou, Iracema, cantar a gaivota?

— Iracema escutou o grito de uma ave que ela não conhece.

— É a atiati, a garça do mar, e tu és a virgem da serra, que nunca desceu às alvas praias onde arrebentam as vagas.

— As praias são dos pitiguaras, senhores das palmeiras.

Os guerreiros da grande nação que habitava as bordas do mar se chamavam a si mesmos pitiguaras, senhores dos vales;

mas os tabajaras, seus inimigos, por escárnio os apelidavam potiguaras, comedores de camarão.

Iracema não quis ofender o guerreiro branco; por isso, falando dos pitiguaras, não lhes recusou o nome guerreiro que

eles haviam tomado para si.

O estrangeiro reteve por um instante a palavra no seu lábio prudente, enquanto refletia:

— O canto da gaivota é o grito de guerra do valente Poti, amigo de teu hóspede!

A virgem estremeceu por seus irmãos. A fama do bravo Poti, irmão de Jacaúna, subiu das ribeiras do mar às alturas da

serra; rara é a cabana onde já não rugiu contra ele o grito de vingança, porque em quase todas o golpe de seu válido tacape

deitou um guerreiro tabajara em seu camucim.

Iracema cuidou que Poti vinha à frente de seus guerreiros para livrar o amigo. Era ele sem dúvida que fizera retroar o

búzio das praias, no momento do combate. Foi com um tom misturado de doçura e tristeza que replicou:

— O estrangeiro está salvo; os irmãos de Iracema vão morrer, porque ela não falará.

— Saia essa tristeza de tua alma. O estrangeiro partindo-se de teus campos, virgem tabajara, não deixará neles rastro de

sangue, como o tigre esfaimado.

Iracema tomou a mão do guerreiro branco e beijou-a.

— Teu sorriso, continua ele, apagou a lembrança do mal que eles me querem.

Martim ergueu-se e marchou para a porta.

— Aonde vai o guerreiro branco?

— Adiante de Poti.

— O hóspede de Araquém não pode sair desta cabana, porque os guerreiros de Irapuã o matarão.

— Um guerreiro só deve proteção a Deus e a suas armas. Não carece que o defendam os velhos e as mulheres.

— Não vale um guerreiro só contra mil guerreiros; valente e forte é o tamanduá, que morde os gatos selvagens por

serem muitos e o acabam. Tuas armas só chegam até onde mede a sombra de teu corpo; as armas deles voam alto e direito

como o anajê.

— Todo o guerreiro tem seu dia.

— Não queres tu que morra Iracema, e queres que ela te deixe morrer!

Martim ficou perplexo:

— Iracema irá ao encontro do chefe pitiguara e trará a seu hóspede as falas do guerreiro amigo.

O pajé saiu enfim de sua contemplação. O maracá rugiu-lhe na destra, tiniram os guizos com o passo hirto e lento.

Chamou ele a filha de parte:

— Se os guerreiros de Irapuã vierem contra a cabana, levanta a pedra e esconde o estrangeiro no seio da terra.

— O hóspede não deve ficar só; espera que volte Iracema. Ainda não cantou a inhuma.

Tornou a sentar-se na rede o velho. A virgem partiu, cerrando a porta da cabana.

IracemaOnde histórias criam vida. Descubra agora