MINHA INFÂNCIA FELIZ

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...E O MUNDO EXIBE A OUTRA FACE!

(recordações de infância)

Nós saíamos, os dois, eu e meu pai, andando a esmo pelas estradas das redondezas da cidade, nos fins de semana. Ele não tomava conhecimento se eu tinha pernas fortes o bastante para caminhar longas distâncias, se tinha fôlego bastante para acompanhá-lo, ou mesmo se tinha disposição para fazê-lo: era ele quem decidia; eu tinha de ir e pronto! Assim, criança ainda, eu fiquei conhecendo vários locais que me marcaram. Nós fomos, a pé, até à Represa do Peti, que eu achei enorme e assustadora, com suas águas verde-escuras que refletiam a floresta fechada que a circundava. Foi a primeira vez que eu via uma floresta nativa e conservada e ia penetrando na estrada de terra olhando todos os pormenores: pássaros, flores, cipós, tipos de caules (alguns manchados de branco, outros de musgos, outros ainda de tons avermelhados); de todos os passeios que fiz com meu pai, este talvez tenha sido o mais extenuante. Fomos à prainha de Brumal, e fiquei surpreso com a beleza do lugar: era uma praia de pedras escuras e meio arredondadas, em formato de um semi-círculo ladeado por grandes moitas de bambus e com águas rasas e mornas (alguns poucos anos depois, as pessoas começaram a extrair os bambús e eu as ia acompanhando; há poucos anos [março/2011], fui revisitar a prainha, que tanto me fascinara, e fiquei sabendo que ela há muito tempo não existe mais: os "empresários da construção civil" de Barão de Cocais e de Santa Bárbara carregaram as pedras e todos os bambus para usar em suas obras e a água está contaminada pela mineração da Vale!) Meu pai e eu fomos várias vezes a um lugar, nas cercanias da cidade, chamado Baú. Nós nos levantávamos cedo, porque era longe, e púnhamos o pé na estrada. O Baú me encantou! O caminho penetrava numa enorme plantação de eucaliptos e, à medida que andávamos, parecia que estávamos adentrando uma fria e fechada espuma de sabão: a madrugada trazia a neblina espessa e, enquanto o sol não desse o ar de sua graça, a neblina não começava a dissipar-se. Depois, os raios de sol iam desenhando linhas retas luminosas entre os ramos e as folhas, e a "espuma de sabão" se desfazia aos poucos e, quando isso acontecia, podia-se notar a altura das árvores (que eu achava gigantescas!), e eu fiquei maravilhado com as pequenas plantas espinhosas de morangos silvestres, muitos, vermelhinhos, que havia em grande número ao longo de todo o caminho, enfeitando as plantas com suas pequenas folhas de bordas rendadas, tingidas de um verde mais do que belo. A fragância exalada pelos eucaliptos era inebriante e penetrante, dando uma sensação de estar quase ferindo os pulmões. Assim, eu ia descobrindo as coisas do mundo... e o mundo (eu pensava) era só beleza! Então, nós começamos a ouvir um choro de criança na casa de uma família vizinha à nossa. "É nosso filho que está morando conosco" – a dona da casa, alguns dias depois, explicou – "ele está passando muitas dificuldades, está desempregado e sem condição de sustentar a família direito – a mulher e a filhinha ainda bebê -, então, nós fazemos o que podemos." Dias depois, através da cerca de arame, eu vi a família sentada no terreiro: a mulher, magrinha, miúda, branca, carregando um bebê no colo, tentando amamentá-lo, o bebê, invisível, sumido no meio dos panos, e o marido, alto, também muito magro, de cara encovada, sério ou triste (não consegui definir), com os poucos cabelos castanhos lisos penteados para trás, exibindo duas acentuadas entradas lateriais nos lados da testa. Dias depois, um caminhão de mudanças estacionou ao lado da casa vizinha e alguns homens colocaram uns poucos móveis na carroceria e o caminhão se mandou – a família visitante estava se mudando para outra casa na Vila. Tempos depois, voltando com meu pai pela estrada do Baú, nós nos encontramos com o rapaz filho da vizinha, carregando uma mala em uma das mãos. "O que você está fazendo tão longe da cidade, moço? Também gosta de passeios longínquos?" O rapaz tentou rir e respondeu: "Não, trabalho como mascate. Compro as mercadorias e as revendo com alguma margem de lucro." O mascate agachou-se na estrada, abriu a mala, e mostrou para nós o que tentava revender: quinquilharias, bijuterias, pentes de plástico, brinquedos baratos (aviõezinhos, carrinhos, bolas de gude multicoloridas, fincas artesanais, etc.), perfumes de baixa qualidade, panos de prato, algumas lingeries, e outras mercadorias pequenas. Meu pai tirou a carteira do bolso, comprou um aviãozinho de plástico para mim, e o mascate riu agradecido e cada um continuou sua caminhada; meu pai veio, cabeça baixa, pensativo, murmurando: "Tá perdido, tá perdido!". Não muito tempo depois, a mulher da casa ao lado veio pedir a minha mãe que me aprontasse para acompanhar o enterro do netinho porque ele havia falecido. O bebê estivera adoentado havia muito tempo e, infelizmente, não resistira. "Acho que ele morreu de inanição, minha filha, morreu de fome; eles não falaram nada, nós não sabíamos que eles estavam nessa situação, pois nem moravam na cidade! A mulher nem tem leite direito! Você notou como todos eles estão magros? Se a gente tivesse sabido..." Jamais vou me esquecer: havia muitas crianças na salinha da casa onde estava o caixãozinho com o corpo do bebê. E ele estava lá, miudinho, branco como neve, sumido no meio dos panos, apenas a ponta do narizinho aparecendo entre as rendas; então, quando o pessoal falou em fechar o caixão, o mascate chorou; chorou em altos brados, a cabeça encostada ao umbral da porta, talvez sentindo-se um pai de família fracassado, em quem a vida vinha seguidamente dando pernadas, e que tinha deixado o filhinho morrer de fome, e seu pai, homem calado, de meia–idade, feições tristes, o ficou rodeando, dando-lhe tapinhas nas costas, tentando confortá-lo: "Deus sabe o que faz, meu filho; Ele é quem manda no mundo, pois Ele é quem o criou. A única coisa que podemos fazer é aceitar!" Então, as crianças saíram carregando o caixão pelas ruas, até alcançar e começar a subir a estrada que levava ao Bairro da Lagoa, ao cemitério. A Lagoa, na época, ao contrário de hoje, era um tipo de bairro proletário aparentemente abandonado pelas autoridades, com ruas sem calçamento, com muitas casas ruins e em mal estado de conservação, algumas de pau-a-pique, com um campo de futebol sem gramado no descampado e uma lagoa que costumava secar em épocas de estiagem; contudo, o bairro era muito frequentado pela gurizada, que aprontava muitas diversões em seus grandes espaços abertos. E, ao pormos os pés no descampado, no caminho plano e ferruginoso que levava ao cemitério, as crianças fazendo a maior algazarra levando o caixão com o defuntinho, eu observei como a visão era bonita: de um lado, uma enorme montanha rochosa e escura pelos lados do Gongo Soco, uma infinidade de pés de bananeiras mais à distância, à esquerda do lago quase seco, e o céu muito azul com o sol luminoso como eu nunca tinha visto e algumas nuvens brancas passeando...! E, ao longe, o muro branco e extenso do cemitério. Subimos a estrada e entramos no portão, onde havia uma inscrição latina que dizia: Sic transit gloria mundi, e nos aproximamos da sepultura onde seria depositado o defunto. Enquanto o pai outra vez se debulhava em lágrimas, debruçado sobre um túmulo, as crianças andavam no meio dos jazigos e tentavam ler os nomes dos mortos e apontavam os dedos em todas as direções e faziam observações a respeito dos retratos de alguns dos mortos e algumas delas tentavam identificar quem já tinha partido, até que tudo terminou e deixamos o cemitério e o bairro. Não tenho lembranças de ter visto a mãe do bebê morto, nem na casa nem no cemitério; talvez a dor pela perda do filhinho tenha sido tão intensa que ela preferiu esconder-se ou temia não suportar a separação definitiva. Ao regressarmos do evento, nem todas as crianças pareciam alegres e descontraídas – eu sendo uma delas!: o fizeram em silêncio e pensativas, talvez antevendo que haveria fatos inesperados diferentes de brincadeiras e folguedos em suas jornadas – que poderiam acabar não sendo tão longas – e que o mundo não era tão repleto apenas de maravilhas!

O GAROTO DA CAMISA 10

(recordações de infância)

O princípio da minha jornada foi repleto de imagens alegóricas que eu criava na imaginação, baseado, principalmente, nas revistas em quadrinhos nas quais, a princípio, eu via apenas figuras coloridas (reis, rainhas, castelos, cavaleiros, lobos maus, porquinhos, e que tais) e as quais, mais tarde, leria avidamente: Papai Noel (em quem eu acreditava piamente e que nunca me deu a bola de couro e a chuteira bonita que eu sempre desejei), a fadas, os duendes, a piscina de ouro de Tio Patinhas, na qual ele dava profundos mergulhos (embora eu nunca tenha entendido para que uma pessoa precisasse possuir tanto dinheiro como ele), e sonhava em possuir um quarto enorme, cheio de açúcar até o teto (açúcar era meu "prato" predileto)enquanto, engalanado naquela roupa espessa de majestade do personagem Reizinho (não sei se esta revista existe até hoje), e com uma linda coroa real sobre a cabeça, receberia meus amigos e amigas para desfrutarmos juntos daquela delícia,enquanto discutíamos nossas aventuras. O tempo passando, eu mudei de leituras e de projetos e passei a enveredar por vias mais práticas; minha diversão passou a ser tentar pescar alguns peixes com anzóis feitos de alfinetes (mas, os lambaris não se entusiasmaram e ficavam indiferentes junto às minhas iscas,virando os torsos prateados languidamente sob o sol da tarde; na época, o Rio São João tinha muita água e água limpa, havendo muitos peixes de bom tamanho),e a construir arapucas que armava no terreiro, para pegar tizius, pardais, tico-ticos e rolinhas. Havia um colega que me acompanhava nas caçadas (nome?não me lembro) e nós prendíamos os bichinhos, depois os pegávamos e, enquanto ele os segurava pelos pés, eu os pegava pelo bico e passava a faca de um só golpe em seu pescoço e, então, jogávamos os cadáveres no chão e os ficávamos observando estrebuchar até à morte (as rolinhas eram comidas assadas). Depois das caçadas, fossem elas frutíferas ou não, nós nos sentávamos na gangorra sob o pé de amora e ficávamos discutindo, fazendo planos e sonhando. A vida era boa e, certamente, todos os nossos sonhos se realizariam, como não? Isto durou até que eu consegui um azulão e o esqueci sem água e sem comida pendurado na parede atrás da casa e, ao voltar da rua (eu adorava andar à-toa!), o bicho estava seco e morto no piso da gaiola: o calor o havia esturricado e eu decidi não mais caçar ou criar pássaros. E então, pelo rádio, eu comecei a ouvir as façanhas da seleção brasileira pelos gramados europeus; ser jogador virou a minha paixão. Eu ia para o campo do Flamengo e, quando a turma da Vila Operária (Geraldinho de Osvaldo Boi à frente; ele quase nunca saía do campo!) não estava ocupando o gramado (quase sem grama!), eu mais minha turma batíamos uma bolinha. Eu me imaginava chegando à biquinha, na qual havia sempre algumas mulheres e moças lavando roupas ou buscando água, vestido com um uniforme da seleção brasileira (camisa 10, calção azul ou branco e chuteiras; eu ia colocar o Pelé na reserva!) e todas elas se admirariam e diriam: "Nossa, como ele é bom de bola! Já está na seleção e joga na posição de Pelé!" (Mas, na verdade, minha admiração maior era por Mané Garrincha), e as meninas mais novinhas ficariam doidas por mim. Minha vocação futebolística durou até uma linda manhã quando,ao acordar, descobri que, sem nenhuma razão aparente, havia ficado míope durante a noite – e miopia brava! – e, além disso, eu desconfiei que futebol não era minha praia e, além do mais, não existem craques de bola quase cegos! -então, eu virei catador de sucata. De qualquer modo, eu já me encantara com os livros e a literatura viria a ocupar um lugar preponderante, mesmo que paralelo, junto a qualquer outra atividade que eu viesse a exercer profissionalmente. Ao me lembrar de meu sonho futebolístico, eu não me recrimino: naquela ocasião, a única diversão para a meninada era o futebol, que mesmerizava as massas por fazer o maior sucesso, visto que possuía grandes jogadores e nenhum perna-de-pau. Eu deixei Barão de Cocais em fevereiro de1969; mudei-me para Viçosa. Em meados de 1976, eu estava almoçando e assistindo a um jogo da seleção brasileira e – surpresa enorme! - quem eu vejo lá, no meio de campo, com aquele andar malemolente característico que eu observava no campinho sem grama do Flamengo de Barão de Cocais? Geraldinho de Osvaldo Boi! E batendo uma bola redondinha, como era seu estilo! Se ele não tivesse sido assassinado pelos pseudomédicos cariocas, sem dúvida, seria um dos maiores jogadores meiocampistas de todos os tempos!

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