O MATADOURO, OS BANHOS NO RIO, AS PESCARIAS, O POMAR
(recordações cocaienses)
O estado de Minas Gerais é repleto de belezas naturais e a zona metalúrgica é especialmente privilegiada neste quesito; as cachoeiras, as extensas matas nativas (infelizmente disputando espaço com as enormes plantações de eucaliptos), os rios, a fauna, a flora, com suas inúmeras flores e árvores nativas remanescentes da mata atlântica, enchem os olhos dos visitantes de outros estados e do exterior e, mesmo os mineiros que têm pendor para as artes pictóricas, ao verem determinadas paisagens de campos e florestas, com suas áreas demarcadas e multicoloridas de verdes de vários tons, o céu de um azul infinito e suas flores esplêndidas, pensam que não seria impossível que Cezanne tivesse visto estas paisagens para criar sua obra pós-impressionista, cheia de cores expressivas, traços fortes e de cubos, e suas naturezas-mortas inigualáveis, obra que tanta influência teve nas artes de meados do século XIX. Mas, na minha adolescência, eu não estava preocupado com artes pictóricas nem com influências artísticas; eu achava tudo muito bonito, mas, queria nadar, aproveitar as águas mornas, bater pernas e me divertir (embora fizesse algum biscate, lógico!). Assim, em uma de minhas muitas andanças, eu entrava na rua principal do Córrego São Miguel; ia para um remanso próximo do matadouro, ia admirando a paisagem: uns arbustos onde abundavam tico-ticos rei, pássaro que eu adorava, com suas penas acinzentadas e seu penacho vermelho-vivo, eram vegetação recorrente nas proximidades do remanso, as estradas avermelhadas cobertas de pó de minério que dá aos cocaienses a pecha carinhosa de pés-de-pomba, e a águas limpas do rio, rasas e velozes, sibilando entre as pedras. Ao chegar ao remanso, pulava na água. Havia uma pedra furada submersa e era divertido mergulhar e passar sob ela arrastando a barriga na areia do leito do rio. Mergulhava, dava infinitas braçadas, depois, deitava-me de barriga para cima no gramado e deixava que o sol me queimasse durante algum tempo. Com a tarde caindo, eu voltava para casa. Então, certo dia, após o banho, morto de fome (nesta ocasião, minha família passava por grande "deficiência alimentar", para não dizer outra palavra mais dolorosa) eu entrei no matadouro e pedi um pedaço de carne a um funcionário. Carne eu não posso lhe dar – respondeu-me ele – mas, se você quiser sangue de boi, pode levar. E perguntou-me se eu já havia comido sangue de boi frito. Não – respondi – eu nem sabia que se come sangue de boi frito. Pois você não sabe o que está perdendo – disse-me – é um alimento ótimo, muito nutritivo e, melhor de tudo! – se você quiser experimentar, é de graça! Assim, eu consegui uma vasilha, enchi de sangue e levei para minha casa. Não é que era gostoso?! Minha mãe temperou o sangue com salsinha, cebolinha e cebola de cabeça, fritou, e o sangue tornou-se uma iguaria inúmeras vezes repetida! Tempos depois, um amigo falou-me a respeito de uma enorme lagoa em um espaço aberto, onde se podia pescar tilápias de vários tamanhos e em grandes quantidades. É longe, mas, se você está esbarrado, vale a pena. Assim, eu o acompanhei e entramos na Rua dos Macacos, rua das Três Bicas (acho que era este o nome da rua que vai na direção da igrejinha de São Benedito), passamos pela igrejinha, subimos o morro que leva a umas minas e, após andarmos bastante, chegamos à lagoa. Ela era realmente grande e possuía tilápias em profusão e estava juncada de pescadores. Inúmeras vezes repeti este trajeto e, embora nem sempre trouxesse peixes, as vezes que os apanhava, era em grande número e de bom tamanho. Continuei pescando até que a época propícia para pescarias findou e todos notaram que as tentativas de captura de peixes era perda de tempo. (Ao visitar Barão de Cocais, fiquei curioso para saber que fim havia levado meu local de pescarias e fui até lá. Hoje, a lagoa fica em um terreno particular, cercado de arame farpado e de mata fechada de vegetação nativa, e é um criadouro de búfalos e, pela cerca, eu os via nadando onde outrora eu apanhava meus pescados.) Mais adiante, um colega me convidou para nadar em um local que ele afirmou ser ótimo! E era mesmo. Nós entramos na mesma rua das Três Bicas e, bem antes de alcançarmos a igrejinha de São Benedito, entramos à esquerda, passamos por uma ponte que balançava horrivelmente e lá estava o local de natação. Era um remanso de bom tamanho, numa curva do rio, cercado por altas touceiras de bambus, e bastante profundo. Aquele tornou-se o meu novo ponto de natação e, alguns dias depois de minha primeira ida, meu colega apontou-me a margem rio abaixo e perguntou-me: "Você sabe onde este rio passa?" "Não!" "Pois passa ao lado do pomar de Zito Moreira, aquele sitiante pão-duro e muito rico!" "E o que tem isso?" "É que lá tem frutas de vários tipos e tamanhos: laranjas, tangerinas, abacaxis, mexericas, peras, bananas e outras coisas. É só chegar, atravessar a cerca de arame farpado, dar uma olhada se o funcionário que toma conta não está, entrar, pegar e dar no pé!" "Mas isto não está certo – eu lhe disse – as frutas, o terreno, tudo é dele." "Eu sei que é dele e pode não estar certo, mas, ele não vende toda aquela quantidade de frutas e, além disso, ele não precisa ficar com todas elas só para ele!" Eu já tinha ouvido falar no sítio do rico sitiante Zito Moreira... e tinha ouvido falar na cartucheira carregada com sal que ele usava para espantar invasores de seu pomar (apenas não sabia se era verdade). E meu colega disse: "A gente podia dar uma ida lá; já é tarde e nós estamos sem almoço até agora." Hesitei muito. Eu não tinha o hábito de invadir quintais alheios, mas, como estava com "deficiência alimentar", acabei acompanhando meu colega. Seguimos a margem do rio e logo estávamos chegando à cerca do sítio. Impressionei-me com o tamanho do terreno: enorme, árvores portentosas, algumas (muitas) carregadas de frutas, mangas, abacates, laranjas, todas aquelas frutas que o moço havia nomeado. Ele forçou uns fios de arame farpado e nós pas-samos, não sem antes darmos uma pesquisada para vermos se o funcionário do sitiante estava à vista. Não estava. Então, avançamos num pé de laranja e num de mexerica, fizemos uma sacola com nossas camisas, enchemos de frutas variadas e logo estávamos de volta para a borda do remanso, nos empaturrando. Fizemos este passeio várias vezes, em dias diferentes. Jamais vou me esquecer: como eu temia ser pego, solitariamente eu passei a ir à noite; levava um saco, enchia de frutas e, antes de me mandar, sentava-me escorado em uma árvore, deliciava-me com muitas frutas, às vezes, os raios de luar caindo poeticamente entre os galhos das árvores, depois, passava pelo arame farpado, margeava o rio, e caminhava para casa. E, então, aconteceu de vários garotos ficarem sabendo de nossas incursões e baterem o pé para irem também. Eu mais meu colega fizemos oposição; era feio, não era para ser feito, não podia era feito, nós o fazíamos porque estávamos com "deficiência alimentar", mas, eles insistiram, ameaçaram nos dedurar e nós terminamos por aceitá-los junto com a gente. Então, o grupo cresceu. E, ao invés de entrarmos margeando o rio, passamos a fazê-lo por um lote que subia atrás do sítio, que oferecia um caminho muito mais curto e menos visível. O grupo ia geralmente à tarde. Descíamos ao terreno, enchíamos as sacolas, depois, subíamos o morro, sentávamos no meio do mato, e ficávamos fazendo troça e devorando as frutas. Então, aconteceu: a tarde começava a cair. Nós havíamos descido ao sítio e enchido os sacos e as sacolas, tínhamos subido o morro, e estávamos sentados no mato, mandando algumas frutas para dentro. Lembro-me que eu tinha ganhado um par de sapatos, usado, mas, ainda em muito boas condições, e os havia tirado para refrescar os pés. O grupo estava distraído, discutindo a forma da terra e eu dizia: "A terra é um elipsoide de revolução deformado e...", e os garotos achavam graça, dizendo que eu era metido a sabido e, então, vi uma cabeleira alourada abrindo caminho sorrateiramente no meio do capim: o funcionário que tomava conta do pomar! Eu apontei o dedo e disse: ali! Levantamo-nos num repente, todos carregando suas sacolas e sacos de frutas, e demos no pé, correndo a toda velocidade no meio do mato! Eu levei as frutas, mas, fiquei sem meu par de sapatos... e fiquei bastante tempo andando descalço. Contudo, algumas vezes ainda voltei, à noite, ao sítio do velho Zito. As frutas eram irresistíveis e, àquela hora, certamente não apareceria alguém para fiscalizar. Algum tempo depois, fui para o Caraça e lá, se você pegasse uma fruta, mesmo que podre, no pomar, ouvia prosa até mais não poder. Ao voltar do seminário, com a cabeça cheia dos bons ensinamentos dos padres, eu ficava me lembrando de minhas aventuras diurnas e noturnas e ficava observando o pomar de longe e pensando que teria sido melhor ter deixado todas as frutas para seu legítimo dono, mas, até hoje eu me imagino sentado, à noite, sob o luar, saboreando uma suculenta laranja baia, encostado a uma árvore, no sítio do velho Zito Moreira.
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MINHA INFÂNCIA FELIZ
Non-FictionEstes textos, que talvez, serão posteriormente apresentados em livro, descrevem fatos e personagens de minha infância/pré-adolescência/adolescência na cidade mineira de Barão de Cocais, onde vivi muitas alegrias e não me deixei marcar pelas tristeza...