A Sombria Música dos Mortos

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Mais uma vez ele chega, o vento frio sopra e a escuridão se faz presente, a pálida e fraca luz de minha lamparina se apaga e um breu toma conta do cômodo, sei que ele se aproxima, sento-me em minha cadeira tomo do lápis e as imagens me veem à mente, mais uma história de escuridão e loucura, temo pela minha sanidade.

A paisagem é desoladora, terrível, triste, cinzenta, o ar é viciado e parado e apenas uma pálida e difusa luz penetra ali, mas não traz calor e nem alento; nesta paisagem seres que antes foram homens e mulheres rastejam como vermes na lama negra, seus lamúrios e berros são pavorosos, gritos de amantes que perderam seus amores, de criminosos arrependidos, atormentados pelas visões de seus crimes e vitimas; aqui neste lugar, almas desalentadas encontram sua punição... Mas este lugar não é o inferno.

O Barqueiro se aproxima, seu barco construído a partir de ossos e carne dos que não pagaram o tributo para a travessia do rio é o único transporte das almas para o outro lado, e junto com ele uma sombria música entoada por milhares de vozes incorpóreas que trazem junto de si o desalento dos insepultos, dos que não encontraram descanso na morte, é a sombria música dos mortos.

A música é uma mistura de lamentos tortuosos, rangeres de dentes, ossos se partindo, o choro de um bebê em uma fria noite invernal, o uivo de lobos cinzentos e os gritos de uma mulher em trabalho de parto, muitos confundem a música com o canto das Banshees, mas estas apenas acompanham a música, atraídas pela sua melodia dolorosa. Todos os mortos a conhecem, todos os mortos a entoam; aos vivos é proibido sequer saber de sua existência e quando por acidente ou por um capricho de algum espírito zombeteiro, um vivo ouve a pavorosa melodia, sua morte é iminente ou este terá uma vida cheia de visões e terrores infindos.

O barco encosta na margem, milhares de almas se acotovelam para poderem embarcar e o Barqueiro, com seu olhar severo e profundo, estende suas mãos cadavéricas para recolher o pagamento, aqueles que pagam tem seu lugar no terrível barco, já aqueles que não pagam são condenados a chafurdarem na negra e fétida lama por toda eternidade juntando-se aos milhares de seres que ali estão; cada alma recusada fortalece o cântico e a música reverbera e tumultua. A tenebrosa melodia penetra minha alma e um lancinante eco de tempos passados ressoa em meu espírito desassossegado trazendo lembranças de amores perdidos e de crimes irreparáveis; o Barqueiro olha-me nos olhos e estende suas mãos, entrego-lhe o tributo e embarco na esperança de que na outra margem do grande Estige eu não ouça mais a triste sinfonia.

A música da morte cresce alucinando os passageiros do barco e tumultuando as almas abandonadas na abominável margem, sem esperanças, sem descanso; a sinfonia toma minh'alma e trazem às visões de meu crime, a dor penetra-me o espírito e clamo por uma misericórdia que jamais me será oferecida:

"POR QUÊ?"

Grito aos quatro ventos e o eco de meu grito se mistura com a música e tenebrosas vozes respondem meu clamor com zombarias e escárnios torturando-me, sou tomado por miragens e alucinações que laceram meu coração já alquebrado e meus crimes ganham vida a cada nota, a cada sílaba da sinfonia que é executada.

"POBRE E ALUCINADO, QUAL ASHASVERUS, SOU CONDENADO A VAGAR, ARREPENDIDO DE MEU CRIME, E COBERTO DA VERGONHA SOU DOMINADO PELO ARREPENDIMENTO".

A cada grito meu, mais vozes se juntam à música, olho para o Barqueiro, que impassível olha-me nos olhos e me diz:

"Escolheste teu destino, esta é a punição para vosso crime, demitiste-te da vida, deixaste o mundo bem antes do que deverias, irás agora juntar-se ao coro dos suicidas e terás teu quinhão na eterna sinfonia, toma teu fardo, e regozije-se nas trevas que te esperam".

A Sombria música cresce como um louvor tenebroso, junto-me ao coro de vozes que clamam por clemência, por misericórdia, mas esta não é dada aos que propositalmente findaram sua vida; então visto o pesado manto de trevas e tomo meu lugar junto aos condenados a vagarem, sem o alento das águas do Lethes, sem a dadiva do esquecimento, condenado a vagar com as visões de meu crime, a onda atroz da lancinante sinfonia toma conta de minh'alma, as vozes me acolhem como um dos seus, abraçam-me em um desconfortante aperto intensificando a dor já insuportável e alucinado, tomado desses pavores, entoo a terrível melodia:

A Música da Morte, a nebulosa, estranha e, imensa musica sombria, passa pela minh'alma fria.

Música nervosa e atroz, turva da agonia,recresce a lanciante sinfonia e sobe, numa volúpia dolorosa.

Sobe, recresce, tumultua e amarga.

Tremenda, absurda, imponderada e largade pavores e trevas alucina.

E alucinando e em trevas delirando com o ópio letal quedo os meus nervos em letárgicofascínio ante ao coro da Sombria Música dos Mortos.

Cartas da Hora Morta - Psicografias de uma alma atormentadaOnde histórias criam vida. Descubra agora