(Narrado por Sávio)
2 ANOS ANTES
Estou realmente empolgado com esse empreendimento que Milena e eu demos início. Aqui estou eu dando conta do meu quinto caso. É impressionante o quanto estamos tendo sucesso com a ANNA (Agência do Negócio Nada Apaixonante). Esse frisson de ficar espionando as pessoas, sabendo sobre elas muito mais do que elas imaginam. Na maioria dos casos, sabendo sobre elas sem elas sequer imaginarem que existimos. Você se sente uma divindade pairando sobre as diversas vidas que são colocadas diante de você, pelos motivos mais variados.
E o ganho da experiência me deixa cada vez mais confiante. Lembro-me que no início eu não era lá essas coisas, apenas repetia os procedimentos que Milena havia me ensinado. Bem que ela me avisou que, com a prática, eu mesmo ia desenvolver alguns procedimentos próprios. Acertou em cheio, Mile.
O cliente da vez é um coroa ricaço, Nestor Perucci. Ele é um magnata do ramo de supermercados, negócio de família. Descendente de italianos, ele vive num casarão pomposo, com um vasto jardim florido e arborizado. É viúvo, mora com os filhos e uma dúzia de serviçais.
Essa é a beleza do desejo de desapaixonar-se. Ele é como a morte, iguala a todos. Os assuntos da alma e do coração nos nivelam quanto à miséria humana, então não importa quão rico ou pobre você seja, a paixão usa venda na hora de alvejar as pessoas com seus dardos em chamas. Por sorte, a nossa empresa recém-chegada ao mundo também não faz distinção de posição social ou poder aquisitivo.
Sr. Perucci parece um homem bastante soturno. Na ocasião em que nos encontramos, em sua casa (pois ainda não temos um escritório, sede ou coisa assim), pude ver que as paredes são decoradas com pinturas de temática sombria. Anjos de negro, donzelas virginais acompanhadas de demônios, a morte acompanhando pescadores deprimidos num barco sob a luz fraca da lua. Entre outras coisas bastante assustadoras. Eu tive uma fase "gótica" na adolescência, mas acabou passando, então esse tipo de coisa atualmente me traz mais calafrios do que admiração. A beleza é inegável, claro, mas não vejo mais isso como motivo de celebração.
Sr. Perucci me recebe sentado em uma cadeira prateada, à beira da varanda. Uma mesinha ao alcance de sua mão tem um bule que, presumo, deve conter chá. Sei lá, parece que ricos não bebem café. Aproximo-me por trás, conduzido por uma de suas empregadas. Posso ver uma brisa que vem e volta, balançando suavemente os poucos cabelos do meu cliente, que dispensa a empregada sem nem mesmo se dar ao trabalho de virar-se para ela.
"Fique à vontade, Sávio. Sirva-se de um pouco de café", o velho me surpreende duas vezes: primeiro que, até hoje, foi o único cliente que se lembrou do meu nome antes do fim da missão; segundo porque eu estava torcendo para que houvesse chá no bule. E se fosse chá gelado, ainda por cima, seria ainda melhor.
"Todo fim de tarde eu me sento aqui, sentindo o vento me tocar no rosto. Mas quer saber um segredo, Sávio? Não é o vento que me toca. É minha falecida Esmeralda. Incrível como o toque é igualzinho a como ela me tocava. Todo fim de tarde meu eterno amor vem e me faz esse carinho."
Ainda mais essa agora. O Sr. Perucci se esqueceu de me informar que está com alguma degeneração cerebral. Agora estou tendo que torcer para que o seu objeto de paixão não seja uma mulher morta.
"Mas não é pra isso que você está aqui. Certamente deve estar pensando que eu tenho alguma degeneração cerebral".
Ok, não dá pra fingir que é muito estranho ele ter praticamente lido a minha mente. Mas continuemos firmes aqui, tentando fazer o trabalho.
"Eu estou perdidamente apaixonado por uma mulher mais jovem, meu caro Sávio".
Nessa idade, não é algo de se admirar. Não sendo uma mulher morta, fichinha.
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DESAPAIXONANTE-- 2a Temporada
HumorContinuação da websérie literária Desapaixonante