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II


A porta marrom do quarto de visitas se abriu e em um ato automático verifiquei se minha arma estava na cintura. Camila deve ter percebido, porque seus braços encolhidos ao lado do corpo estremeceram e ela abaixou a cabeça. Seus passos vieram vacilantes em direção ao sofá oposto ao meu no outro canto da sala e ela se sentou, encarando o restante do ambiente. Uma fina camada de poeira subiu com seu peso e me perguntei se alguém havia sentado ali depois que papa morreu.

A voz da jornalista na TV nos privou do silêncio. Olhei para minha marmita fria do dia anterior e me perguntei o que deveria fazer agora. Ela tinha fome? Estava tentando fugir de novo? Levantei meu rosto. Seu corpo tremia um pouco e era fácil ver o tom fraco da sua pele exposta em sua regata amassada e suada. Seus cabelos estavam bagunçados e seu cheiro não era particularmente bom. Ela me lembrava dos corpos que tirávamos da rua depois de uma manhã agitada de Natal. Ao mesmo tempo, parecia mais viva do que na manhã que a encontrei.

Camila estava tentando roubar, pela terceira vez, meu carro, uma barata vermelha de preço popular que ficava estacionado aqui na frente do prédio. Nas duas vezes anteriores eu a levei para a delegacia sem nem olhar seu rosto, exclamei meia dúzia de frases que papa me ensinou e ela não me encarou de volta. Seus olhos não conseguiam me focar e eu tampouco sabia se existia alguém ali dentro de sua cabeça ainda, carregando aquele corpo sujo.

Na terceira vez desisti dos sermões ensinados por meu pai e me escondi para a observar manusear um objeto contra meu carro. Ela não parecia saber direito o que estava fazendo e suas roupas estavam tão sujas que o verde e o vermelho eram um só por cima de seus shorts curtos. Senti medo por ela. Por usar roupas assim naquele bairro e por não conseguir segurar uma barra de metal com a força necessária.

Eu via a consequência dos impulsos de quem moravam nas ruas todos os dias. A carne suja de sangue. Camila parecia entender e não se importar. Ela continuou tentando entrar no carro e com dificuldade abriu a janela. Caminhei em silêncio até chegar ao seu lado e ela só percebeu que não estava sozinha quando não podia mais correr. Camila me olhou com medo e foi a primeira vez que vi o castanho dos seus olhos. Duas pedras escuras e deslocadas. A garota magra se virou rapidamente e arrancou algo do painel do meu carro que não pude ver, mas quando tentou correr a agarrei pelo quadril com facilidade. Ela era mais leve que meu último cachorro, então a joguei contra o carro sem muito cuidado, mas com mais paciência do que havia feito nas duas vezes anteriores. A voz do meu pai não estava mais na minha cabeça e eu estava curiosa demais com sua atitude repetitiva.

Quando a virei de frente pra mim, vi a raiva refletida. Sua mão estava fechada em um punho e eu a algemei, abrindo seus dedos com forças e vi meu chaveiro de Wisconsin que ficava pendurado no retrovisor. Ela tentou o segurar, mas o tirei e guardei no bolso. Afastei meu corpo do seu e, pela primeira vez desde que a conheci, realmente a olhei.

Suas roupas pareciam estranhas para o lugar. Sua pele suja, seu corpo magro, seu cabelo castanho e comprido. Sua respiração apressada e a óbvia raiva que emanava de seu corpo. Ela tinha um Allstar branco e manchado nos pés e meias em listras cor de rosa que não pareciam ser trocadas há semanas. Camila fedia às ruas, mas as ruas não pareciam a reconhecer. Imaginei um animal sendo expelido pelo próprio ecossistema; sem casa e sem ninho. Também vi marcas de agulhas em seu braço esquerdo. Vermelhas demais. Novas.

Não sei porque fiz aquilo. Se me perguntassem, não saberia dizer, mas faria de novo. A peguei no colo e a coloquei no ombro. Seu peso insignificante não fazendo efeito em mim enquanto ela se debatia. Deveria ter a deixado na delegacia ou em um centro de recuperação. Deveria ter a levado para uma igreja, mas a levei para casa.

ruas de amarelo [short-fic]Onde histórias criam vida. Descubra agora