III
— Você não precisava ter feito isso.
— Não tinha porque não fazer, também. — Respondi, mas Camila segurou sua expressão acusatória. Tentei parecer animada mas estávamos pisando em ovos e aquilo pareceu ser falso — Olha, eu sei como é difícil o que você está passando.
— Sabe? Como? — Havia um desdém resignado que ela não conseguiu esconder, mas não era maldade. Era mais fácil ler Camila nesses últimos dias.
Faziam dois meses que ela morava comigo. Limpa. Não gosto de contar as semanas em que seus berros não me deixavam dormir e nem os dias em que ela ainda tentou comprar drogas na rua. Nenhum dos seus traficantes atuais ousou vender algo para ela. Meu pai tinha uma reputação que eu fiz questão de manter, fosse essa uma boa decisão ou não.
— Você está certa, eu nunca passei por isso. — Respondi vencida. Tirei as caixas de comida tailandesa de dentro das sacolas e espalhei para a mesa, buscando nossos talheres e voltando a olhar sua feição desconfiada. — Mas eu posso apenas opinar? Acho que devemos comemorar. Você está sendo muito forte e hoje fazem 93 dias desde... Bem, você sabe.
— Eu não sabia que você estava contando.
— Você não está?
— Eu não preciso contar. — Sua voz saiu baixa, mas seus ombros se levantaram simples.
A encarei por alguns instantes. Eu não tinha imagens de santos em casa e minha geladeira costumava ser enfeitada por um par de cebolas e diversas garrafas de cerveja. Minha mãe não me visitava mais e os amigos que fiz na polícia tinham suas próprias merdas para lidar. Se você vê sangue por tempo demais, você o vê em todo o lugar. Eu precisava manter minhas paredes limpas. Eu nunca me importei com isso, mas sua voz cortada agora me dava vontade de abraçá-la.
Nessas semanas preenchi as prateleiras com comida enlatada e outras coisas fáceis de fazer. Jantávamos no restaurante chinês barato da esquina e tomávamos café na padaria que ficava embaixo do prédio. Eu não deixava mais a porta trancada quando saía. Um dia cheguei em casa de madrugada e vi que ela havia feito um bolo e deixado duas torradas preparadas para mim. De noite, no mesmo dia, Camila colocou dois pratos em uma bandeja e comemos burritos na sala. Não íamos mais no restaurante chinês depois daquilo.
— Uma vez eu fumei maconha. — Falei de repente. Camila me olhou curiosa e seu pedaço de frango temperado ficou parado no garfo.
— Tenho certeza que você se recuperou muito bem desse ato rebelde. — Ela não queria, mas sorriu.
Não era tão raro assim conseguir tirar um sorriso de Camila nesses dias. A verdade é que nunca seríamos amigas. Eu sempre estaria na parte das memórias que ela gostaria que não existissem, mas eu me achava necessária agora e Camila aparentemente também. Além disso, minha curiosidade ainda existia. Enquanto ela voltava seu rosto para o prato, vi o porta retrato do meu pai em sua farda na entrada da sala.
— Você tem irmãos? — Ela perguntou.
— Ahn.. Não. Eu tive. — Eu nunca falava dele. Nós não falávamos dele.
— E?
— Ele morreu. Quando era criança ainda.
— Sinto muito.
— Não sinta, está tudo bem. Eu tinha apenas três anos, não lembro direito.
— Mesmo assim, você perdeu muita coisa.
— Perdi?
— Ter um irmão mais velho, você perdeu isso.
— Não posso sentir falta do que nunca tive. Acho que as coisas são naturais de alguma forma.
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ruas de amarelo [short-fic]
FanfictionLauren é uma policial de valores bem definidos que traz no uniforme as palavras que aprendeu com o pai. Ela está conformada com sua herança no mundo, mas quando a mesma garota tenta roubar seu carro pela terceira vez, uma voz em sua cabeça começa a...