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IV


O carro estava parado embaixo da chuva há dez minutos. Estávamos em frente a uma casa amarela e do banco de motorista eu podia ver a tinta desbotada que não chegava até o chão de grama gasta, mas circulava pelas janelas e ali eu também podia ver que faltava um vidro em uma das separações quadriculadas. Contei todos os quadradinhos para me distrair do silêncio de Camila ao meu lado.

Quando acordei e vi suas malas perto da porta, eu sabia. Eu soube desde ontem e ela também. Assim que seus braços fizeram traços circulares sobre os meus enquanto deitamos de olhos abertos durante a noite, sabíamos. Ela preparou o café como em qualquer outro dia, mas eu comi sozinha enquanto seus olhos marrons me observavam do outro lado da mesa. Não consegui falar muita coisa, estava ocupada demais tentando parecer compreensível em vez de acusatória. Era difícil, porém, imaginar que Camila tinha uma casa para onde voltar, mesmo eu repetindo que foi justamente por isso que a tirei das ruas; para que ela pudesse voltar para alguém e que esse alguém também não era eu. Então me tornei silêncio, em vez do egoísmo.

Molhamo-nos que nem dois pintos no lixo antes de entrar no carro. Minha farda atingindo um tom mais escuro de azul e ela com um vestido claro e esverdeado que eu havia lhe comprado semanas antes. Suas mãos se mexiam nervosas e me lembrei das nossas primeiras semanas juntas. Percorri meus dedos até os seus em um aperto leve e foi assim que chegamos aqui, em frente à casa amarela de tinta insuficiente, dentro do carro.

— Você vai entrar comigo?

— Você quer que eu entre?

— Acho que sim. — Ela não conseguia me encarar e eu também precisei respirar algumas vezes antes de destravar nossas portas para corremos até a varanda. Eu de botas com poças e Camila com suas duas sacolas de roupas molhadas. Pensei que ela fosse hesitar de novo, mas antes que pudesse correr, uma voz fininha nos chamou através do furo quadrado na parede e vi o corpo ao meu lado travar.

Mila?

Camila se virou assustada quando a porta abriu. Percorreu os olhos pela madeira até chegar na figura magrela de cabelos castanhos que estava ali. As duas se encararam por alguns segundos e então a garotinha sorriu com um pequeno dente faltando.

— Mila, você tá tão bonita! — Ela quase não conseguiu completar sua frase antes de Camila se ajoelhar para lhe apertar em um abraço choroso.

Deixei as sacolas de roupa ao lado das duas e me mexi para ir embora, mas uma mão fina se enroscou no meu pulso e me virei para encarar os olhos marejados de Camila. Não tive tempo de me decidir, porque nossa atenção foi desviada para um homem alto, careca e de olhos profundos e azuis, que parou na porta sem entender o que estava acontecendo.

— Pai, pai! Mila está aqui!

— Sophia, vá para dentro.

— Mas eu tô com saudade dela, pai!

— Dentro, Sophia. – A voz dele não tinha raiva e Camila não o rebateu, apenas sorriu para a irmã e a deixou ir. Quando ele finalmente percebeu minha farda vi que havia entendido errado o motivo de estarmos ali.

— Olha, policial, a senhora me desculpe. Eu não tenho dinheiro dessa vez.

— Douglas...

— Camila, por favor! O aluguel tá atrasado, eu não posso...

— Ela não foi presa, senhor. — Interrompi.

— E o que você tá fazendo aqui? — Ele então se virou para ela e suas mãos percorreram o topo vazio da cabeça em um gesto automático.

ruas de amarelo [short-fic]Onde histórias criam vida. Descubra agora