05.

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V

Eu nunca entendi de pessoas. Quando escutava seus choros e quando ouvia suas desculpas de vapor bêbado, eu não as via. Deixei que outros as interpretassem por mim; meu pai com sua experiência e minha mãe com sua apatia. Eu nunca quis olhar para as pessoas porque sabia que elas olhariam de volta e então eu também teria que ver a mim.

Depois de Camila, pedi licença da polícia por algumas semanas. Não era uma dispensa, era um período de descanso, meu médico disse. Abanei a cabeça e assinei os documentos que me foram dados. Cada cadáver que visse na rua, eu sabia, veria ele. Veria ela e veria o sorriso e a janela quebrada dos quadriculados da casa.

— Dona Lauren?

— Sim, Esmael, sou eu... — Minha voz soou rouca e reconheci o porteiro mais velho do prédio do outro lado da linha.

— Desculpa incomodar a patroa assim cedo, mas é que a caixa aqui da senhora tá lotada e me deixaram uma coisa aqui, porque não cabia nela.

— Minha caixa de correio?

— Isso, isso! Ela tá cheia aqui... A senhora quer que eu leve as coisas aí pra senhora?

— Não precisa, Esmael. Eu já desço, obrigada.

É claro que estava cheia. Eu não lembrava da última vez que saíra do apartamento. Era quase Natal e minha mãe tinha mania de me enviar presentes exagerados como uma desculpa para não passarmos o feriado junto. Desci as escadas e Esmael estava me esperando com sua roupa bem passada e sorriso conivente. Suponho que ser uma policial de licença tenha seus méritos perante o resto da sociedade que não entende de licenças, corpos e policiais.

Só quando voltei para o apartamento e me deitei de volta no sofá percebi que o embrulho maior não tinha o endereço da Flórida, mas sim da casa amarela. Era a primeira notícia que tinha de Camila. Aquietei meu coração com certo aborrecimento e rasguei o papel pardo apenas para ver o mesmo livro de capa branca e dedicatória de Caio cair em minhas mãos.

Haviam as mesmas palavras e citações e o restante da caixa só estava coberto de outros livros, os quais não quis nem ver se haviam outras dedicatórias, porque uma só já me me martelava os ossos. No fundo, porém, encontrei um bilhete pequeno e azul com as letras tortas de Camila.

"Devemos ficar um com o outro enquanto vivermos?"

Não demorou para que eu reconhecesse a frase. O mesmo Whitman que Caio fizera Camila decorar e agora eram os mesmos versos que eu repetia sem pensar a noite. Eu sentia as palavras escapando entre as janelas entreabertas e derretendo a tinta escura da minha sala. Vi os versos rasgando o estofado do sofá e tirando as panelas de dentro do armário. Fechei os olhos para quando elas percorreram o corredor e quebraram as trancas das portas, revirando os lençóis desarrumados e ainda com cheiro de Camila. Senti o frio das letras pequeninhas de serifa antiga com urgência. Não quis ouvir o mesmo convite de novo, mas as palavras também vieram em mim e agora eu sentia a saudade nelas. De tudo que estava no chão, olhei de volta para a forma que ela me olhava e também me deixei cair. De pouquinho em pouquinho. Levantei-me devagar ao seu lado e comecei a revirar a casa eu mesma, em sua companhia.


Camila foi me visitar no outro dia. A encontrei sentada em frente a porta quando voltei do supermercado. Eram as primeiras compras que eu fazia em semanas e também só fizera porque ela estaria ali uma hora ou outra. Quando entramos em silêncio, senti-me como quem fosse a menina carregada nos ombros e deixada dentro do quarto mofado. Camila não parecia incomodada, ao contrário, tirou os sapatos e ficou de meias. Percebi que seus olhos estavam cercados por uma maquiagem de traços escuros que encaixa com um sorriso leve e inédito para mim.

ruas de amarelo [short-fic]Onde histórias criam vida. Descubra agora