Capítulo I

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Mariana nunca foi tímida, nem saberia sê-lo. Nasceu ruiva, briguenta e reclamona. A cor vermelha dos seus cabelos sempre foi um holofote natural, chamando a atenção de todos ao seu redor. Na escola, nem precisava de nome, era a ruiva. Apelidos, aliás, nunca faltaram: Ruiva, Pimentinha, Pequena, Sardenta, Miúda, Mari... Como ondas do mar batendo num rochedo, os apelidos iam e voltavam sem abalar a personalidade dela.

Cresceu assim, sem medo de ser quem era. Nitidamente diferente desde o berço, sem ligar a mínima para isso. Uma peça que veio de fábrica e não se encaixava no brinquedo. Mariana também nunca foi bonita. A bonita era Milena, a melhor amiga. Tampouco, chegava a ser feia. O adjetivo para descrevê-la fisicamente não poderia ser outro além de exótica.

Tinha imensos olhos verde-água puxados nas pontas com cílios tão claros que nem dava para ver. Tinha a pele toda pintadinha de sardas dando-lhe um tom de ferrugem, uma boquinha de boneca de porcelana, que apesar da delicadeza de formato, era dada aos maiores impropérios e os cabelos de cachos muito grandes, muito vermelhos.

A mãe adorava o cabelo de Mariana. Divertia-se arranjando os cachos em penteados. Ela era a única ruiva da casa, da família. A recessiva entre as recessivas. Alice agradecia aos céus pelo presente de uma filhinha linda de cabelos tão vermelhos. Sua Pequena Sereia. Sempre, sempre, sua Pequena.

Quando a mãe morreu, os cabelos lhe incomodaram demais. Pareciam um tributo a um passado que jamais voltaria. Vermelho vivo passou a ser a cor do sofrimento para Mariana, então, ela os pintou de azul, e de verde e de roxo, mas o vermelho tinha uma resistência incrível. Resistente como a própria Mariana. Resistente como o amor que era capaz de sentir.

Agora, com dezesseis anos, assumia novamente o vermelho vivo. Sem nenhuma camada de tinta. De certo que Alice não voltaria jamais para a sua vida, mas quem disse que algum dia ela havia partido? A mãe sempre estivera ali, na resistência dos seus cabelos. Na base de tudo que Mariana era. A morte não conseguiria separar jamais amor tão grande assim. Até porque, não existia Mariana sem Alice, a mãe era um pedaço enorme dela mesma.

Foi Alice quem moldou a personalidade de Mariana. Bem verdade que ela já veio prontinha da maternidade. O bebê mais chorão do apartamento. A criança mais mal-humorada da creche. A menina mais briguenta da escolinha. Enfim, um pequeno furacão que revirava tudo por onde passava.

Já Alice era o oposto. Etérea. Quase não pisava no chão. A tranquilidade em forma de mulher com seus gestos largos e delicados. Com um sorriso no rosto, resolvia todos os perrengues nos quais seu furacão particular se envolvia. Contava os segundos até a próxima intervenção pacientemente. Ainda bem que ela nunca gostara mesmo de rotina.

Suas amigas a censuravam por não ser dura. Heloísa, sua amiga de infância, criava uma princesinha dentro de casa usando vários tons de rosa, enquanto sua filha entrava na porrada com os meninos mais velhos que ela para defender seu Pokémon favorito. Nem perdia tempo tentando se justificar. Separava quando corriam risco de se machucar e só. Sabia que um dia o trabalho de lapidação em Mariana daria muito resultado. Ela era uma joia rara.

Sua Pequena era diferente. E ela achava fantástico ser diferente. Incentivou cada idiossincrasia. Se a menina nunca seria uma princesa, Alice tinha muita curiosidade para saber no que se tornaria. Afinal, livre da obrigação de ser delicada, poderia ser qualquer coisa. Mariana não tinha limites, todas as suas amigas afirmavam isso com convicção, mas tinha o universo de possibilidades em suas mãos. E ela jamais abriu mão disso. Fez pintura, escultura, teatro, japonês, alemão, culinária, trapézio, equitação, yoga, tudo que lhe deu vontade de fazer. Sem trauma. Sem medo. Sem tentar ser a melhor. Fez pelo prazer e pelo tempo que lhe deu prazer.

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