A noite na casa de Jake tinha nos aproximado de Ashley, e ela passou a sentar conosco todos os dias no horário de almoço. Nesse dia, especificamente, ela estava aérea e pegando o celular várias vezes sem de fato fazer nada. Estava checando notificações. A certa altura, ela simplesmente se levantou com o aparelho aceso em mãos, nervosa.
Estávamos rindo de piadas ridículas quando Ashley deu sinal de vida novamente minutos depois, só para tirar a bandeja da mesa e dizer que não se sentia muito bem para ficar o resto do dia. Pediu para que Jake avisasse aos professores de Geografia e Trigonometria de sua situação, e saiu do refeitório mais uma vez, depois de deixar a bandeja junto com as outras. Estava cabisbaixa, e pude vê-la respirando fundo antes de se afastar mais.
☆☆☆
A primeira casa em que parei com o carro foi a de Alex, como sempre. Dos três garotos, ele era o que morava mais perto desde que tínhamos uns dez anos e sua mãe decidira se mudar pra cá. Moravam sozinhos, e lembro vagamente de seu pai indo visitá-los algumas vezes. Depois, o garoto vinha até mim com seus suéteres de desenho animado dizer como tinha sido frustrante. Seu pai ia geralmente dar dinheiro, com exceção de uma ou duas vezes que ele fora pra discutir a redução do valor que tinha que pagar regularmente. As visitas sempre acabavam em gritos, vidros quebrados e estresse. Em uma delas, lembro de Alex não vir pra minha casa e fiquei muito preocupado, para descobrir no dia seguinte que ele havia apanhado bem feio.
- Ahoy! - exclamei, fazendo-o rir. Assim que ele se sentou ao meu lado, pude sentir o cheiro de álcool fortíssimo saindo de sua boca. - Porra, cara, já? Não faz nem uma hora que chegamos em casa. - ele deu de ombros, e eu hesitei antes de dar a partida no carro. Ele não veio comigo. - Você não ficou na última aula, né?
- Óbvio que não, Sam... - revirei os olhos, observando-o pegar um dos CDs como se nada estivesse acontecendo.
- Larga isso, e me explica o motivo de ter matado sem nem me avisar. Você sempre me avisa! - ele ficou em silêncio. - Olha, Alex, você é meu melhor amigo há quase oito anos e eu me preocupo muito quando você dá esses sumiços assim, e ainda mais quando eu não fico a par da situação. Agora dá pra, por favor, falar o que diabos está acontecendo?! - mais silêncio, e ele se afundou mais no banco. - Alex! - gritei.
- Ele voltou! - ele berrou, mais alto do que eu jamais vira. - Aquele filho da puta escroto decidiu que era uma ótima hora para ressurgir das cinzas, e depois ainda se estressou por me ver em casa, ao invés de na escola. - ele disse, ainda gritando (inconscientemente, percebi), e tirou o cabelo que cobria a bochecha direita. Um punho estava marcado ali, quase tão vermelho quanto seu cabelo, já começando a ficar esverdeado. Ficaria roxo em breve.
Olhei em seus olhos, e vi que estava prestes a chorar. E algo me disse que ele tinha chorado mais hoje. Sua jaqueta jeans mais pesada do que parece cobria seus braços até os pulsos, parcialmente cobertos por várias pulseiras. Ele só usava aquela jaqueta específica quando era muito necessário, ou quando precisava cobrir alguma marca no corpo. Havia ganhado de presente do pai em um de seus aniversários, e teria sido um presente razoavelmente aceitável, se o homem não tivesse errado o dia e ainda aparecido bêbado. Aliás, naquele dia eu me lembro que também foram ouvidos alguns gritos.
Eu ainda encarava as mãos trêmulas do meu melhor amigo revirando a pilha de CDs quando sua voz interrompeu minhas terríveis lembranças daquela noite de domingo bastante chuvosa.
- Você vai ligar essa coisa e ir buscar o Wesley ou o quê? - disse, sem se virar para mim ou fazer qualquer movimento senão mexer nos discos.
Proibi-me de falar qualquer outra coisa, e apenas dei a partida. O silêncio era ensurdecedor, e até Alex finalmente colocar uma música aleatória para tocar, senti-me claustrofóbico num ambiente tão pequeno e tão cheio de palavras embargadas. Assim que Wesley entrou no carro, começou a berrar junto da música e simular um baixo em suas mãos, fazendo nós dois rirmos. Nenhum dos rapazes sabia da gravidade da relação de Alex com o pai, tudo o que sabiam é que morava sozinho com sua mãe e que ele os havia deixado há quatorze anos.
Todo o histórico de surras de Alex invadiu minha mente, de repente, e o meu também. Meu pai alcoólatra e seus xingamentos intermináveis se tornaram palavras soltas, gritadas uma em cima das outras no meu cérebro. Acontecia uma ou duas vezes por semana, mas não apanhava todos os dias. E então a voz de Wesley tomou conta do espaço, e eu agradeci mentalmente pela nova música que se iniciara.
- I met a girl at seventeen, thought she meant the world to me, so I gave her everything, she turned out to be a cheat...
- Said she'd been thinking for a long time and she found somebody new, I've been thinking that this whole time... - Alex acompanhou.
- Well, I never thought you'd stay, that's okay, I hope he takes your filthy heart in and he throws you away someday... - cantamos os três até chegarmos na última casa.
Quando parei o carro na frente da casa de Jake, avistei Ashley sentada na calçada do outro lado da rua com uma garrafa de cerveja na mão. Ao nos ver, ela se levantou e veio até nós, antes mesmo de Jake aparecer.
- Ei, hm... A proposta de eu ir com vocês ainda está de pé? - perguntou, com a mão livre enfiada no bolso. Seu rosto estava inchado, e seus olhos e nariz bem vermelho. Passara as últimas horas chorando, com certeza.
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Hurricane • PROJETO BADLANDS •
DiversosAshley, revoltada com tudo e todos à sua maneira, é forçada a se mudar da cidade onde nascera e crescera, na Austrália, para o Brooklyn, com 16 horas de diferença. Tinha tudo pra ser um desastre. De certa forma, foi. Mas tudo acaba tendo um lado bom...