O vídeo cortava e a próxima cena a aparecer era em um local que eu conhecia perfeitamente, embora nunca houvesse conseguido permissão para entrar.
As paredes perfeitamente brancas, asseadas de maneira impecável. As estantes metálicas com instrumentos cirúrgicos em todos os tamanhos e tipos. A principio, eu olhava para todo aquele aparato tal como estivesse olhando para algo alienígena, prestes a me abduzir ou me utilizar para experimentos mas aos poucos eles iam se transformando em velhos amigos de aço, amigos cuja saudade urgia para que se reencontrassem ainda que pela primeira vez para então trabalharem juntos.
A garota parecia haver tomado consciência acerca do destino que lhe aguardava e seu rosto se contorceu em uma expressão de desespero quando ele parou ao lado da maca.
Lagrimas começaram a escorrer daqueles olhos esverdeados, vidrados de pânico. Sempre teve curiosidade em saber o que se passava na cabeça das pessoas naquela situação. Nunca conseguira decidir-se entre o desejo de chegar logo ao fim ou a esperança de que algo superior o salve no ultimo momento, antes do corpo expulsar o ultimo folego de vida.
Não saberia dizer se é possível continuar crendo em algum tipo de existência superior capaz de alterar o curso dos acontecimentos uma vez que não se tem mais perspectivas e tudo o que você deseja é ser abençoado com uma nova, mas nessa hora creio que já não importa mais se é por Buda, Ganesha, Deus ou até mesmo o Super Homem ou o Batman.
Sabemos que a morte surda, mas nunca cega, anda aos nossos lados todos os dias, cruzando nossos caminhos indefinidamente e esperando apenas a hora em que tropeçaremos nela, para nos amparar em seu abraço, mas nunca estamos preparados de fato para que isso aconteça.
Levantava essas duvidas, mas com a mesma velocidade que iam, vinham.
Não me importava que ela esperasse pela interferência divina, naquele momento, eu era abençoado por uma nova perspectiva, e isso me era mais do que prazeroso
Era facil entender o motivo pelo qual ele fazia questão de gravar tudo. Durante todo o processo existem dezenas de expressões e momentos únicos que poderiam ser perdidos pra sempre sem esse auxilio, e com a gravação, ainda garantia o fato de poder reviver aquilo quantas vezes tivesse vontade, assistir mais uma vez a aquela garota exclamar apenas com os olhos ao ver sua perna esquerda retirado do lugar enquanto o toco ensanguentado era cauterizado com cuidado cirúrgico, para que ela não entrasse em choque. O doce desespero que a dominava de forma cada vez mais profunda enquanto ele repetia a ação na próxima perna. O desespero é doce, enebria, encanta. Mas não existe sentimento capaz de imputar melhor a sensação de prazer e controle do que o medo. E esse medo se estampava em seu rosto a cada vez que ele se afastava da mesa e voltava com outro dos meus velhos amigos cirúrgicos em mãos.
O cuidado com que ele fazia cada etapa, repetindo quando achava necessário,era quase o mesmo que se dedicava a uma criança adoentada.
O ápice do pavor em seu rosto se deu quando com uma faca comprida e de gume fino, ele pressionou contra a a coxa sem vida da garota e a carne pareceu desmanchar como manteiga em faca quente, expondo o osso branco de maneira tosca.
Era como assistir a um açougueiro de experiencia incrível trabalhar, pois em poucos minutos havia finalizado todo trabalho e armazenado a carne em sacos hermeticamente fechados, passando então a trabalhar na outra perna.
Ele fazia tudo como ritual previamente ensaiado, tudo era sistemático e programado e assim como a primeira, terminou em poucos minutos. Rapidamente, ele puxou uma nova bandeja de instrumentos e passou a trabalhar em seu tórax. Algo dentro da garota havia se quebrado e era possível ver isso em seus olhos. O desespero parecia transformado em aceitação e seus olhos vidrados escorriam lagrimas incessantes que pareciam uma especie de prece silenciosa para que tudo acabasse de forma rápida.
O corte em forma de T tinha precisão cirúrgica e por alguns instantes o desespero voltou a acender seus olhos, mas então aos poucos seu corpo começou a estremecer como se dançasse um balé arrítmico e a vida a escapar dos seus olhos, tornando-os vazios e opacos. Havia enfim terminado, e o rosto da garota congelara aquela expressão de medo desesperado, e assim permaneceria indefinidamente. A expressão dele no entanto, era uma incógnita. Se assemelhava ao rosto de alguem com fome ou sede, mas continha decepção em níveis gritantes.
Rapidamente compreendi o que se passava em seu rosto. Ele queria mais, precisava encontrar alguem.
Eu sugeri que fizéssemos isso, que encontrássemos alguem, não me importava que fosse um podre. podres, era assim que ele chamava os que eliminávamos da face da terra, mas ele me disse que eu ainda não estava pronto.
Tentei insistir, argumentar, mas ele foi inflexivel. Contei a elesobre tudo que havia sentido ao ver o video na esperança de persuadi-lo. Sobre a vontade de estar do lado de dentro da sala e até sobre a curiosidade pelo sabor da carne.
Ele sorriu paciente e me perguntou mais uma vez o que eu havia achado do cordeiro, então compreendi que a carne que ele havia servido no almoço era humana, talvez inclusive a da garota. Eu não soubera diferenciar, então jamais soube quantas vezes eu ja havia ingerido carne antes de saber que o estava fazendo, mas a maior importância que dei a isso foi a de jamais ter certeza do momento exato da primeira vez.
Ainda assim ele ainda não me julgava pronto para o ajudar. eu sabia que havia algo faltando, mas com toda a frustração que me dominava, eu era incapaz de precisar o que era. Os três dias que sucederam após o vídeo foram nada mais que um borrão alcoólico do qual muito pouco me lembro. Litros de álcool foram minha companhia no quarto vazio e escuro e a alimentação fora quase nula. Um dos poucos flashes que tenho é de berrar ofensas a ele e depois em um momento seguinte estar chorando, abraçado a ele e dizendo que nunca seria bom o suficiente, perguntando entre soluços e engasgos o que me faltava para ser bom, o que eu não tinha dentro de mim.
Ele me escutava com paciência, e deve ter me guiado de volta ao quarto, pois acordei envolto no lençol chapado de suor.
Eu ja havia recomeçado a maratona da bebida quando em um momento de epifania eu descobri o que me faltava. Eu nunca estaria pronto enquanto continuasse aguardando um sinal verde. Eu precisava agir, surpreende-lo mas como?
VOCÊ ESTÁ LENDO
Catarse - O Açougueiro
HororPrimeiro volume da série de histórias que compõe a série Catarse. O termo provém do grego "kátharsis" e é utilizado para designar o estado de libertação psíquica que o ser humano vivencia quando consegue superar algum trauma como medo, opressão ou...