Parte 2 - A noite de Lua Cheia

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Diante de todo o espetáculo que se passava na frente desses meus olhos miseráveis, sou levado a um passado nas terras da ilha que um dia ela fora. Lembro de que o meu primeiro pensamento foi como ela devia ser triste...tão sozinha, isolada, desabitada. Mas bastou olhar ao redor para descobrir a verdade: ela era pura. Pura. Ela não era nada além dela. E era isso que me ensinaria a ser.

Na praia ela já se impunha. O mar revolto tentava adentrá-la, trazendo, com seu sal, impurezas vindas de outros continentes. Chegava a ser engraçado, todas morriam na areia. Algumas, devo admitir, até tentavam-na, mas ela lembrava de sua mãe, nas tardes ensolaradas, quando elas iam ao parque e comiam algodão doce. A mulher sempre dizia: "não deixe que nada destrua quem você é, promete? Não temos mais muito tempo juntas e preciso ter certeza de que você ficará bem". Enfim, o tempo acabou e no velório ela decidiu honrar a promessa.

Continuou sendo alegre, cheia de energia, vivendo em seu mundo particular, no qual começo a me embrenhar. Vou seguindo por matas densas, repletas de vida, que abrigam animais selvagens e perigosos. Matas onde os pássaros cantam ao amanhecer e repousam quando a noite cai. Encontro árvores. Algumas enormes, outras retorcidas, outras com o fruto mais doce nunca antes provado. Um solo fértil, nunca fecundado. Ela nunca havia sido visitada.

Acordava todas as manhãs para ir à luta, antes da mãe morrer o pai já havia ido embora. Ela só tinha ela. Trabalhava exaustivamente para poder se sustentar. Ás vezes, no final do expediente, saia com os colegas da empresa. Eles iam em algum restaurante ou bar e ela sempre pedia tequila, pois era a única lembrança de seu pai. Em outras noites, reunia-se com as amigas de infância e iam dançar. Ela amava a pista. Não saia de lá nem para beber algo.

Algumas vezes, marinheiros inocentes, encantados por seu céu estrelado, tentavam se aproximar. Em vão. Ela estava muito presa nela mesma. Não podia esquecer a promessa e achava que amar era abrir mão de si. E cada vez que isso acontece, você coloca uma máscara no lugar, como que para tampar o buraco. Bom, ela tinha pavor de máscaras, sempre a assustaram desde criança.

Assim, nas noites de Lua Cheia – antes que eu me esqueça, essas eram as preferidas dela – o mar ficava agitado e ela sentia mais necessidade de permanecer em si, para se defender das impurezas. Ela ficava em casa, tocava piano, assistia filmes franceses e cozinhava (como ela amava cozinhar!). Nem sonhava que um dia viraria o prato principal.

Aconteceu em uma noite de mar revolto e tempestade. O tipo de noite que as mães recolhem os filhos das ruas mais cedo, que as folhas caem e os navios naufragam. Ela se protegia como podia dos destroços. Entretanto, naquela em especial, enquanto cortava os legumes, sentiu-se sozinha e pensou, pela primeira vez, que talvez não fosse tão ruim ter alguém. E nesse momento, o mar o trouxe a sua praia. Um aventureiro. Um belo aventureiro que cruzava os oceanos quando a chuva começou. E até hoje, não sei se foi a fragilidade do momento ou o jeito que ele solava na guitarra. Mas por algum motivo, ela o deixou entrar.

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