Parte 1 - Quase uma melodia

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Dizem que alguns acontecimentos tem o poder de te mudar, de te arrancar de você mesmo e criar algo novo no lugar. Algo melhor, ou pior, depende. Bom, eu preciso fortemente discordar. As coisas não te mudam, elas te revelam. Algumas situações têm o poder de penetrar na sua epiderme, nos seus órgãos, nas suas células, e te tocar a alma. Elas te alcançam, lá, onde você se esconde, e arrancam todas as suas máscaras, uma por uma, até que só reste você. Então você se tornará você, como eu me tornei eu naquela noite.

Lembro-me que fazia demasiado frio, mas eu seguia andando na escuridão, guiado somente pelas estrelas enquanto o vento tentava cortar-me a carne. Mesmo assim, eu continuava, imerso em meus pensamentos vagos, sem saber aonde estava indo, quando de repente a ouvi.

No primeiro instante, pareceu-me quase uma melodia, mas ainda estou tentando descrevê-la. Busquei títulos no meu vasto repertório das obras mais sublimes já criadas, mas nada se parecia com ela. Não era algo que se escute nos teatros, que se aplauda de pé ou que seja capaz de te emocionar. E, certamente, não era aquilo que toca no plano de fundo quando os enamorados trocam juras de amor. Continuei buscando. Pensei em chama-la de cantiga de ninar, pois era doce, aguda e bela, contudo, havia algo nas entrelinhas que me fez abandonar essa ideia. Após todos esses anos ponderando, cheguei à conclusão de que era uma "quase melodia", penso que não haja título melhor para ela. Então aí começa a nossa história.

Era quase uma melodia e conforme eu me aproximava ela se revelava horrenda, agonizante, dessas que tocam nos piores filmes que você já viu. A quase melodia de quando o mundo se parte, de quando o mal vence, de quando não tem felizes e nem para sempre e nem história. Era com isso que se parecia, mas eu me apaixonava por ela e continuava me aproximando. Quase uma melodia. Quase. Quase. Ela quase se fazia ouvir, no meio do silêncio que ensurdecia. No meio do vazio, da noite e do nada. Ela era quase uma melodia. Como eu era quase eu até escutá-la.

Começava com o agudo tilintar do seu sangue na areia, escorrendo, por entre sua pele, pingando, tim tim. Vamos, faça-se ouvir! Quase. Sobe o tom. Seus dentes rangendo, ela tremia, de frio ou de medo, não consegui distinguir. Ela tenta. Quase. Quase consegue esboçar um grito, abafado, atormentado, aterrorizado. Quase. Ah! Recordo-me de pensar nos artistas, nas pobres almas perdidas, em busca de dor, sofrimento, expressão. Eles sentiriam tanta inveja! Tanta inveja de tudo que ela quase era! Sentiriam inveja de seu terror e da beleza indescritível que havia nele. Eu estava em êxtase! Santo Deus, como? Como ela conseguia? Como ela quase conseguia?

Lá estava ela, estirada na areia, destruída, humilhada, à beira da morte, como? Perfurava o silêncio com sua dor, seu quase grito, seu sangue, seus dentes e ah, antes que eu me esqueça! Seu coração! Céus, quanta petulância ele demonstrava! Era incrível, provocante, hilário. Ele teimava em bater! Sim, já era fraco, oscilante, mas sempre ali, emitindo um quase som, coordenando a quase melodia. Tum, tum, sobreviva! Tum, tum, só mais um pouco, tum tum, aguenta firme, tum, tum, faça-se ouvir! Quase.

Pensei que não viveria para ver algo mais lindo que isso na vida, era impossível. Eu estava diante da coisa mais poética, elevada e transcendente que um mortal já testemunhou. Aquela quase melodia. Podia ficar horas ali, só a contemplando, como se tivesse nascido para aquele momento. Ah, ela era tão perfeita, tão harmoniosa, tão desesperada. Eu a amava. Eu amava como ela quase se fazia ouvir. Não há espetáculo mais lindo na Terra, pensei. Eu estava errado. Foi o momento seguinte que me levou à loucura!

Juro por Deus que vi aquilo, o mais incrível aconteceu naquele instante. Lágrimas! Lágrimas! Me entendem? Não eram quase lágrimas, eram lágrimas! Ela teve força, ela se fez ouvir, ela quebrou o quase! Eu viraria eu para admirar aquelas lágrimas salgadas que jorravam de seus olhos, contaminadas com tudo o que havia dentro dela, jorravam, levando tudo o que estava dentro dela (tão pura!), inundavam seu arredor, formavam um oceano de  trevas, enorme, obscuro, salgado. Ela era uma ilha.

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