Parte 4 - a caverna

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Minha ilha parecia um Carnaval fora de época: máscaras, máscaras e mais máscaras...uma verdadeira aberração. Qualquer criança que olhasse para ela gritaria de pavor, aliás, qualquer adulto também. Era uma cena amedrontadora. Apesar disso, eu não me assustava, afinal, esse sempre foi o paradoxo dela. Uma mistura de beleza e horror.

Eu só enxergava aquela caverna. Sem mácula, sem ornamentos, só ela. Com aquele coração afrontoso, rebelde, teimando em bater. Ele ainda protegia a alma de todas as impurezas das ondas, que já eram tsunamis no momento. Sempre lá. Afirmando que você estará sempre em você. Que eu estaria sempre em mim. Que ela estava nela. Só precisava se reencontrar. Tum, tum. Força, minha querida!

Como se não desse para ser mais surpreendente, nessa caverna havia um lago, com as águas mais cristalinas que alguém jamais vira. Águas puras, nunca antes bebidas, onde eu podia ver meu reflexo pela primeira vez. Fiquei contemplando-o como um cachorro diante de um espelho, que não fazia ideia de quem era o ser do outro lado. Doente com aquele enantiomorfismo. Até que, aos poucos, me acostumo e percebo que a figura do outro lado é quem procurei a vida inteira. E que estava lá o tempo todo.

A imagem vai ficando turva, desfocada e eu estendo os braços para tentar alcança-la, em vão. Da onde vinha aquela perturbação? Claro, o aventureiro. Ele havia pulado na água. Mergulhava a fundo, não tinha medo de se afogar. Ia envenenando cada gotícula com sua essência corrosiva.

Ela se abraçava forte para tentar se manter inteira. E chorava todas as noites quando ele chegava bêbado em casa. Ou quando ele exalava o perfume de outras mulheres e dizia que eram infinitamente melhores do que ela. E, ás vezes, ele a espancava e, quando ela conseguia, corria para o banheiro e se trancava lá, fechando os olhos profundamente a cada soco que ele dava na porta. O sangue pingava. As lágrimas escorriam. E as máscaras iam caindo. Aos poucos. Mesmo assim, permanecia submergindo.

Até que na última briga, após murros e pontapés ele pegou a Fender e tentou golpeá-la na direção da barriga. Ela desviou e implorou que ele não o fizesse, pois estava grávida, esperando uma parte dele. Ele se dirigiu à cozinha, será que estaria mais calmo? Ela baixou a guarda e se permitiu respirar. Ele não mataria o próprio filho, isso seria...Ele voltou correndo com uma faca em sua direção e ela pulou a janela e correu o mais rápido que pôde, chegando até a praia.

Ele a alcançou. Ela gritava. Gritava. Gritava. Mas ninguém viria em seu socorro.

Então a encontro, caída, sozinha, aos prantos. E vejo todas as máscaras terminarem de despencar. O mar ia recuando e ela voltava a aparecer imponente no cenário da noite. Ali só existia ela. A lâmina em seu peito...ah, que grande prova de amor! Ela protegeu a barriga em vez do coração. Me abaixo ao seu lado e seguro na mão dela. Minha menininha.... Ficamos ali até que a vida expire, até que haja um novo começo para nós dois.

O terror em seu rosto vai dando lugar a um semblante de paz. Seu coração, o mais bravo dos guerreiros, vai se tranquilizando e, por fim, escorre a última lágrima. Pura. Eis a minha redenção. Minha bela redentora, que deu a vida para que eu pudesse existir plenamente! Eu a amo! Eu a amei por toda a sua vida. Será que ela me reconheceu? Gosto de acreditar que sim, pois havia perdão em seus olhos.

Fico ao seu lado até o último instante. Depois, me levanto e continuo andando. Chego a um bar. O garçom pergunta: " uma tequila, senhor? Como sempre? ". Recuso. Então volto para casa e toco piano, a única coisa que pude ensiná-la. Entre uma nota e outra, imagino ela acima das estrelas, sentada no banco de um parque, comendo algodão doce ao lado de sua mãe. Honrando a promessa. Como venho fazendo. Assim espero.


FIM


A ilhaOnde histórias criam vida. Descubra agora