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A certidão de óbito estava guardada na gaveta pouco mais de onze meses, mas a ficha ainda não havia caído para Cecília por completo. Sua vida virara de cabeça para baixo em pouco menos de um ano. Há um ano atrás ela dividia o pequeno, aconchegante e charmoso apartamento com o marido. Eles eram casados há pouco mais de três anos e finalmente o apartamento que haviam comprado ainda no noivado havia ficado pronto. As prestações eram pequenas e eles pagariam pelos próximos 25 anos, mas a alegria de enfim ter a sua casa, a casa deles, fazia o peso da dívida desaparecer por completo. 

E foi na manhã de um domingo na cozinha daquele mesmo pequeno apartamento, enquanto preparava uma xícara de cappuccino, que sua vida mudara. O celular tocou e a foto do marido, com um sorriso gigante aparecendo entre a barba, apareceu na tela. Cecília sorriu ao pegar o celular, não via o esposo há quase uma semana, pois ele havia viajado a trabalho. Tinham falado um pouco ontem à noite, porém Cecília precisou desligar para terminar de preparar a aula que daria na manhã seguinte na Escola Bíblica Dominical.

— Bom dia, querido.

— Ah, bom dia... — aquela voz não era de Fernando, era uma voz de mulher, carregada de confusão e preocupação. — Aqui é do Hospital Santa Rosa, queríamos avisar que o senhor Fernando de Azevedo sofreu um acidente.

Ao invés de ir para o rotineiro trajeto em direção à igreja, Cecília dirigiu até Vitória, onde pegou um avião para o Rio de Janeiro, não suportaria a viagem de seis horas de carro, da sua cidade no Espírito Santo até a capital do Rio. Ficou duas semanas com Fernando na UTI, mas apenas ela voltou respirando para casa. O translado do corpo de Fernando foi feito de carro e alguns dias depois ele foi enterrado em um cemitério da cidade interiorana onde ele e Cecília moravam.

Dizer que Cecília voltou viva para casa era demais, uma parte dela havia sido enterrada com o marido.

Um ano depois daquela ligação, em meados de dezembro, o apartamento estava sendo alugado para um outro casal, que estava prestes a ter o primeiro filho. Cecília não conseguia se quer vê-los, porque ela sentia que aquela devia ser a sua vida, sua vida com Fernando. Estava tão deprimida que não podia cuidar de uma casa sozinha, os pais a receberam de volta e ela largara a carreira para trabalhar como secretária na empresa do pai. Ele a deixava ficar em casa sempre que os dias pareciam escuros demais para ela e deixava que a vida caminhasse mais devagar.

Haviam muitos dias escuros, e eles começavam quando Cecília abria os olhos de manhã e percebia que não dormia mais em uma cama de casal, não haviam braços fortes em volta dela nem alguém para quem pudesse implorar para que a cortina fosse fechada nos sábados de manhã, quando a mesma era esquecida aberta na noite anterior. Lá estava ela de novo, na mesma cama em que passara a adolescência, no mesmo quarto com paredes azuis e com nuvens pintadas no teto. Na parede havia um enorme quadro de alumínio, preenchido com fotos dela e da irmã mais nova, fotos com amigos e com o próprio Fernando.

Com frequência ela não tinha vontade de levantar, preferia passar o dia debaixo da coberta, imaginando que ainda era uma universitária de férias, que a qualquer momento ia receber uma ligação do namorado e eles iriam juntos para a lanchonete favorita dela. Mas tudo não passava de frutos da sua imaginação! A verdade era que seu marido estava morto, e nada podia mudar isso.

Desde a triste notícia, Cecília ouvia centenas de condolências e em pelo menos metade delas diziam que se aquela era a vontade de Deus então tudo ficaria bem, tudo daria certo. Afinal, Fernando tinha ido para sua verdadeira casa, o céu, e Deus continuaria cuidando de cada detalhe da vida dela. Alguém sempre compartilhava com ela outro chavão:

— Deus nunca nos dá um fardo maior do que podemos suportar, menina.

Só que para Cecília tudo aquilo não passava de bobagens! Se Deus a amava mesmo, por que a faria sofrer daquele jeito? É claro que ela queria que fernando fosse para o céu, mas ele tinha direito a ter uma boa vida não? Eles deveriam ter tido tempo para terem filhos, comprar uma casa melhor, juntar dinheiro para a faculdade das crianças e viajarem com os filhos. Fernando seria um pai incrível, um avô apaixonado e um bisavô encantador. Porém, ele não poderia fazer mais nada disso. Sua vida foi ceifada estupidamente, tudo por causa de motorista embriagado que dirigia a 120 km em uma pista que permitia 60 km.

Que Deus zeloso era esse? Que simplesmente matava os seus filhos no auge da vida? Cecília não poderia entender aquilo, nunca poderia... O que ela ou Fernando haviam feito para merecer aquilo? Ela dedicara seus dias em uma busca constante para ser alguém segundo à vontade de Deus, tinha zelo por suas atividades na igreja e se guardara para o casamento da forma como Deus queria! Ela havia esperado por um homem segundo o coração de Deus e quando ele finalmente havia chegado o mesmo Deus bondoso o levou! Aquilo só podia ser brincadeira.

Pelos olhos da féOnde histórias criam vida. Descubra agora