III

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Sônia, Rebeca e Cecília estavam sentadas à mesa da varanda ensaiando a canção "Aleluia" que cantariam naquela noite no culto de Natal da igreja, quando resolveram dar uma pausa.

— Se eu continuar cantando essa música nunca mais vou querer ouvi-la. — Rebeca comentou no mesmo momento em que se levantava da mesa.

— Somos duas! — Cecília concordou. — Mãe, a Emile é super animada, não é?

Cecília ainda não fora capaz de esquecer a alegria e a empolgação que transbordavam de Emile. Aquela mulher tinha uma energia positiva, uma paz e uma fonte de sorrisos que parecia não ter fim. 

— Demais, menina! E isso impressiona mais ainda se você souber a vida que ela leva.

— É mesmo?

— A Emile teve câncer de mama há alguns anos, fez tratamento e se recuperou, só que agora ele voltou, com muito mais força. O câncer já se espalhou por várias partes do corpo, tadinha. Ela está fazendo quimioterapia. 

— Nossa, mãe!

— E se ainda não bastasse ela foi traída pelo marido quando teve câncer pela primeira vez e ele a abandonou. — a mãe balançou a cabeça de forma negativa, sofrendo com a situação da amiga.— Ela ainda precisa criar a filha adolescente e cuidar de uma irmã que tem  uma doença mental e necessita de cuidados especiais.

— Uau! — Cecília tentou imaginar a situação.

— E ela faz tudo isso com o pouco dinheiro que ganha com as aulas de canto.

— Ela canta tanto, devia ter a oportunidade de lançar seu próprio CD...

— Eu sempre penso isso quando a ouça cantando. Deus tem grandes planos pra vida dela, eu sei.

Cecília não conseguia entender de onde Emile tirava tanta força e alegria para vencer seus dias difíceis. De onde vinha aquele sorriso gigante? Onde ela encontrava esperanças para encarar um futuro totalmente incerto? Como ela podia ter fé quando a mesma, aparentemente, não a trazia nada de bom?

Com o coração tão cético, talvez Deus não a quisesse cantando naquela cantata de Natal.

***

Às 19:30 daquele domingo, 25 de dezembro, Cecília e a família adentraram a igreja, a mesma em que as meninas cresceram, se batizaram, desenvolveram um relacionamento com Deus, onde Cecília conheceu Fernando e até onde se casaram. Ela ainda era capaz de vê-lo no altar! Fernando cantava e tocava violão, passara grande parte dos últimos anos servindo a Deus através do louvor. Uma pontinha de dor surgiu em seu coração, mas Cecília fez de tudo para não deixá-la crescer.

Foi muito bem recebida na igreja, pelos velhos amigos, pelos conhecidos de longa data e apresentada a novos membros também. Todos disseram que sentiam falta dela, mas nada falaram sobre sua perda, o que foi muito bom.

Ficou em pé próxima a porta, junto com um grupo de amigas da irmã que tagarelavam sem parar. Foi quando viu um carro azul entrar no estacionamento da igreja. O azul do veículo era diferente, um azul claro e brilhante como o tom do céu em um dia de verão. Do veículo ela viu sair um homem de terno preto, com uma gravata em tons de vermelho. Ele trazia uma pasta e um sorriso doce no rosto. Assim que a percebeu olhando para ele, concedeu um sorriso gentil a Cecilia. Acanhada por ter sido pega, Cecília sorriu de volta e voltou sua atenção as moças que conversavam.

Alguém começou o culto e pediu que todos sentassem em seus lugares. Cecília e Rebeca se sentaram próximos aos pais. Quando o coral da aula de canto foi chamado para ir ao altar, Cecília se levantou junto com os demais, seu vestido vermelho de saia rodada a deixou muito encantadora, assim como o pingente com uma estrela dourada que o pai lhe dera de presente.

Quando o coral começou a tocar, a própria Cecília foi tocada pela letra e melodia da canção. Diferente do que a letra dizia, quando a pior luta da sua vida chegou, ao invés de se esconder nos braços do Senhor, Cecília se permitiu ser derrubada e enquanto deveria estar encontrando consolo e paz em Deus, ela preferiu discutir com ele. Cecília estava tão cansada! Cansada dos questionamentos, cansada de estar brava com o Pai que ela mais amava. Ela queria muito respeitar a vontade de Deus, mesmo que não concordasse de início com ela.

Será que ainda dava tempo de se esconder nos braços do Aba?

Quando desceu do altar após a apresentação do coral, foi parada no corredor pelo homem de terno preto que ela vira sair do carro azul.

Ele segurou as mãos de Cecília entre as suas.

— Ainda dá tempo. Ele está de braços abertos pra você. — ele afagou a mão dela e sorriu.

Cecília agradeceu e voltou a sentar no banco, se questionando se em algum momento, durante o tempo em que cantara, tinha parado de cantar e falado alguma coisa. Como aquele homem podia saber o que ela pensara? Ela nunca o havia visto antes! Tentando ignorar os questionamentos que surgiam, Cecília abriu a Bíblia aleatoriamente e sorriu ao ver o versículo destacado com marca texto amarelo:

"Que é a fé? A fé é a certeza de que o que nós esperamos está nos aguardando e a prova de existem coisas que não podemos ver adiante de nós". - Hebreus 11:1

O homem do terno preto nada mais era do que o pregador da noite e durante breves quarenta minutos, ele falara em uma simplicidade sobre Jesus que se Cecília ainda não o conhecesse, iria querer conhecê-lo naquele exato momento. Sem destacar os milagres, a grandeza do nascimento de Jesus e o grande sacrifício que ele fizera, o pastor Samuel, ou Sam, descreveu a humanidade do menino, jovem e homem Jesus.

— Pense comigo, igreja... O Filho do Criador do Universo deixou a casa de seu Pai, se levantou do trono, deixou de ouvir o cantar dos anjos e a comodidade de sua vida, para crescer no ventre de uma moça e nascer em um humilde estábulo. Ele sentiu frio, dores de cabeça, fome... Jesus passou por todas as necessidades humanas, sejam elas físicas, emocionais ou psicológicas. Jesus foi traído, difamado, rejeitado pelo povo da sua cidade e pelo amado povo de seu Pai. E se não bastasse, ele sentiu a dor de uma morte injusta. Você já viu alguém que ama morrer injustamente? — o pastor deixou que a igreja meditasse em sua pergunta.

Cecília lembrou-se do falecido marido. Uma lágrima solitária escorreu por sua bochecha.

—Foi esta a dor que Deus sentiu por você. O Aba permitiu que seu amado filho morresse de forma cruel para que você e eu tivéssemos direito a vida eterna. E este Pai de amor não nos ama de maneira suficiente para nos fazer feliz nesta vida também? Ah, ele faz! Pode não ser bem da forma como planejamos, mas quando temos o coração guardado nas mãos de Deus, a alegria vem pelo simples fato de sabermos que não estamos sós, de que alguém nos ama!

"E que nesta noite, em que simbolicamente comemoramos o nascimento de Jesus, que não nos esqueçamos de uma das maiores revoluções feitas por Ele: Cristo nos apresentou a um Deus Pai. Cristo nos permitiu conhecer o Deus que ele conhece, o Pai que nos vê em secreto, que cuida de nós tão bem quanto veste os lírios do campo e dar de comer aos pássaros, o Pai que dá aos filhos o seu melhor! O pedido do Pai ao Filho foi que este fosse enviado a Terra para nos salvar. Qual é o seu desejo nesta noite? Além de ser grato por tudo o que Pai e Filho já fizeram por você, há algo para pedir? Se há, peça."

Cecília olhou para a fila de cadeiras do outro lado do corredor e se esqueceu das próprias dores, das suas mágoas, do que dava combustível a sua depressão. Emile estava sentada em uma das cadeiras, no lado direito estava sua fila adolescente, no esquerdo sua irmã. Nos rostos daquelas três mulheres haviam sorrisos profundos e olhos brilhantes, olhos carregados de fé.

Quando Sam convidou que os ouvintes ficassem de pé e orassem apresentando a Deus seus desejos, Cecília implorou ao Aba para que Emile fosse curada, para que assim ela pudesse continuar cantando, estar presente no casamento da filha e permanecesse cuidando da irmã. Cecília contou a Deus o desejo de seu coração e creu que Ele continuaria sendo Deus, caso não a curasse.

E enquanto ela exercia sua fé, a medida em que rasgava o seu coração na oração mais sincera e pura que já fizera, os anjos foram ordenados a começarem os trabalhos para curar o seu coração. Cecília estava deprimida, angustiada, de luto, com a fé enfraquecida, questionada, mas naquele momento dera o passo mais importante crera que há um Deus no céu e que este escolheu ser seu Aba. 

Pelos olhos da féOnde histórias criam vida. Descubra agora