Cecília havia ido deitar cedo naquela noite, estava com dor de cabeça e seus olhos ardiam. Sua irmã mais nova chegaria na rodoviária da cidade em torno de meia-noite, Rebeca havia acabado de entrar de férias e passaria os próximos meses em casa. Há quatro anos sua irmã caçula, oito anos mais nova, morava no Rio de Janeiro e estudava medicina em uma universidade federal. Rebeca era a menina dos olhos, o orgulho da família! E todos estavam loucos para tê-la de volta, inclusive Cecília, mas a imagem da irmã lhe trazia imagens dolorosas.
Rebeca ficara com ela no hospital nos dias em que Fernando ficou em coma, e Cecília pôde ver o quão madura e responsável sua irmã estava, apesar de ter completado só 21 anos. Rebeca nutrira a fé de Cecília e juntas elas oraram fervorosamente nas duas semanas em que Fernando ficara internado. Elas criam na cura e acreditaram que Deus a faria. Cecília não questionou a vontade de Deus um momento se quer, apenas pedira desesperadamente o que queria. E quando Deus não a respondera da forma que tanto pedira, foi como se a sua fé tivesse sido retirada dela.
A irmã havia vindo poucas vezes para casa naquele ano e apesar de sentir muitas saudades dela, Cecília ficava feliz pela distância, porque não queria se lembrar dos dias dolorosos vividos no hospital nem ver nos olhos da irmã o brilho da pena e da decepção. Por ser a irmã mais velha, Rebeca sempre vira Cecília como um ícone, um referencial. Uma segunda mãe, só que mais jovem e despojada do que Sônia, a mãe delas. A vida escolar e acadêmica brilhante de Cecília sempre impressionaram Receba e a inspiraram a seguir seus próprios sonhos. Só que Cecília não se reerguera da última queda.
Ela havia pego no sono ao passo que passeava entre as lembranças, mas acordara quando ouvira vozes vindas da sala. Era óbvio, pelo sussurrar das vozes que estavam tentando não acordá-la. Cecília sorriu de alegria ao identificar a voz e levantou sorrateiramente para dar um susto na irmã. A porta estava entreaberta e antes de abri-la, Cecília parou diante da conversa que transcorria no outro cômodo.
— Ela ainda tem passado o dia todo no quarto, mãe? — Rebeca perguntou baixinho.
— Ainda mais nas últimas semanas...
— Você tem conseguido levá-la ao psicólogo?
— Toda semana, mas ela não se abre de jeito nenhum, nem com o médico nem comigo. O médico disse que isso é comum em casos de depressão e que nós precisamos incentivá-la a sair do quarto, fazer um passeio, praticar uma atividade física, ver gente. — a voz da mãe soou chorosa e cansada, aquilo partiu o coração de Cecília. A última coisa que queria era fazer a família sofrer.
— Talvez ela saía comigo.
— Eu espero muito que sim, Rebeca. Tenho orado o tempo todo para que Deus mude a situação dela.
— Ela ainda continua brava com Deus?
— Sim...
- Não se desespere mamãe, Deus continua cuidando dela, de cada detalhe.
— Esta deve ser a médica mais religiosa que existe! — Cecília sussurrou à medida em que voltava a se deitar.
***
O cheiro do café recém passado fugia da cozinha e corria pela varanda, onde Sônia havia preparado a mesa para o café da tarde, a refeição preferida de Rebeca, que aliás não parava quieta havia uns vinte minutos, contando detalhadamente os acontecimentos do ano.
— Que tal sairmos hoje, Lili? — aquele era o sobrenome que Rebeca dera para a irmã quando era pequena.
— Onde você está querendo ir?
— Fiquei sabendo que abriu uma hamburgueria nova na cidade! O ambiente é temático, inspirado nos anos 60, muito aconchegante. Do jeito que você adora!
— Tudo bem. — Cecília tentou soar o mais agradável possível.
— Eu posso levá-las até lá! — Sônia sugeriu, toda contente.
— Ótimo, mãe. — Rebeca sorriu, empolgada como uma garotinha de cinco anos.
Quando o sol começou a se pôr, fazendo do céu uma tela pintada com um rosa suave acompanhado de traços alaranjados, Rebeca já tinja tirado diversos vestidos da irmã do guarda-roupa e montado seus próprios looks também. Cecília se divertiu com as escolhas da irmã e ficou contente com a sessão extra de maquiagem. Quando finalmente estava pronta, o reflexo que viu no espelho a agradou. O vestido de tecido lilás realçava sua cintura e a deixava mais jovem, sem parecer ridícula. A maquiagem leve a agradava e a sapatilha preta era confortável.
A mãe já estava dirigindo quando seu telefone tocou.
— Atende pra mim, Rebeca.
Dois minutos depois, ao invés de seguir para o centro da cidade em direção a hamburgueria, a mãe virou o carro indo para a igreja, a mesma igreja que Cecília tinha que dar uma aula há um ano atrás, aula que a privou de ter uma conversa digna com o marido.
— Eu só preciso abrir a igreja para o grupo da aula de canto, meninas. Depois levo vocês até a lanchonete.
— Você faz parte do grupo, né mãe? — perguntou Rebeca.
— Sim, querida. Nós estamos ensaiando algumas canções para o natal.
— Ah, que legal!
Bem que Cecília tentou ficar no carro quando Rebeca foi arrastada por um grupo de mulheres, jovens e mais velhas, para dentro da igreja. A ideia de que a mãe só abriria a porta e levaria as filhas para o destino combinado não foi bem aceita e quando Cecília deu por si estava sentada em uma das cadeiras de plástico branco da igreja.
O ensaio começou sem que ela e Rebeca pudessem impedir a mãe de cantar. Cantar era uma das coisas favoritas de Sônia e as meninas não negaram o usufruto da mãe do seu dom. Porém, antes que o ensaio começasse de fato, um convite foi feito as meninas.
— Cecília, Receba, por que vocês não cantam com a gente? — uma das mulheres questionou. Era Verônica, a líder do ministério de jovens. Ela fora chefe do departamento em que Cecília trabalhara na igreja durante anos.
— Ah, eu adoraria! — Rebeca levantara com um pulo e já se preparava para a cantoria.
— Vem também, Cecília! — Verônica incentivou.
— Eu não sei cantar, Verônica. Não sei mesmo!
— Ela acha que não sabe, mas eu sei que ela sabe... — Sônia apareceu do nada e abraçou a filha pela cintura.
— Mãe, você lembra de quando eu cantava no banheiro?
— Não era tão ruim assim, Lili. — Rebeca argumentou.
— Mas o que você tem a me dizer sobre todas aquelas vezes em que parou o que estava fazendo só para me pedir pra parar? — a pergunta de Cecília se perdia entre suas próprias risadas, motivadas por recordações de um passado alegre.
Depois de muita insistência Cecília se reuniu com os membros da aula de canto, jovens, adultos e até algumas senhoras.
A professora de canto escreveu em um quadro a letra da música que eles cantariam e começou a dividir as pessoas em fileiras segundo a divisão de vozes. Todos se sentaram, exceto Cecília.
— Qual é a sua voz? — a professora perguntou a ela.
— Nenhuma, eu nunca contei.
O grupo ali sentado riu de Cecília, não por ela não saber que tipo de voz tinha, mas pela forma engraçada com a qual falou, e ela própria riu de si mesma.
Cecília foi colocada na primeira fila e tentou imitar as vozes que ouvia. O ensaio foi mais divertido do que ela pensara e ela parecia ter facilidade para cantar em conjunto, assim suas imperfeições não apareciam tanto.
Além do grupo ser animado e ser composto por pessoas que ela conhecia tão bem, a professora era super divertida. Ficava muito empolgada quando o grupo cantava certinho e era animada demais, além de ter uma voz incrível!
— E ai, como você está se sentindo? - a professora, Emile, perguntou a Cecília no fim do ensaio.
— Uma cantora profissional! — Cecília brincou, estava empolgada como nunca e louca pela noite de natal.
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Pelos olhos da fé
Short StoryNo último Natal, Cecília recebeu um telefone que mudou sua vida. Seu marido havia acabado de sofrer um acidento no Rio de Janeiro e após duas semanas em coma, faleceu. A vida simples, feliz e romântica que demorara tanto para construir se ruiu e Cec...