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AQUELE SERIA o primeiro ano da universidade e a gente tinha se dado bem, muito bem. Eu faria Arquitetura na FAU e Cíntia, Medicina, também na UFRJ. Não eram os mesmos cursos, não seríamos mais colegas de turma, mas pelo menos era o mesmo campus.

"E o que importa é a amizade, meu amor, que é eterna", eu lhe disse aquela noite, na hora em que saíamos da boate, após termos dançado muito e beijado alguns carinhas que não demoraram a nos oferecer ecstasy com péssimas intenções — uma oferta que, é claro, nós duas recusamos.

Melina, minha irmã mais velha, não havia nos dado carona dessa vez. Ela não estava nem um pouco a fim de bancar nossa chofer numa noite de sábado. Tinha seu próprio grupo de amigas e nós duas não éramos lá muito unidas. Embora também não fôssemos inimigas, entendam. Éramos apenas do tipo cada-uma-na-sua. Mas, enfim, sem o carro dela, estávamos de táxi aquela noite e era também assim que planejávamos voltar para casa. (O trajeto era o mesmo, afinal, já que Cíntia morava em Botafogo e eu na Urca.)

Enquanto caminhávamos pela calçada em direção ao ponto de táxi mais próximo, Cíntia me pediu para fazer o lance de sempre: ela escolhia um carinha "interessante" que viesse passando por nós e eu lhe contava o que ele estava pensando. Às vezes o que eu descobria eram coisas bem engraçadas. Como na ocasião em que esbarramos com um bonitão de 21 anos, um tipo viril, rodeado de garotas lindas e de quatro por ele, que no entanto só tentava esconder a aflição que sentia naquele momento por causa do horário — a bronca que ia levar da mãe ao chegar em casa àquela hora. Rá-rá! A velha o tratava como criança, controlando seu único filhote pelo bolso, já que ele vivia à custa dela.

"Pronto! Esse aí", disse Cíntia, indicando um moreno robusto que se aproximava.

"Ah, nada de mais", eu disse. "Acabou de deixar a namorada em casa e está voltando pro bar onde eles estavam com os amigos. E não, não tem nenhuma intenção de aprontar alguma coisa agora que a namorada foi dormir. Na verdade, neste exato momento, está pensando nos dois juntos na cama dele, em como seria bom passar a noite com ela. Ou seja.... É só um desses homens raros que a gente adoraria ter pra chamar de nosso, mas que são sempre as outras que conseguem, meu bem."

"Pô! Melhor nem ter ficado sabendo."

"Não é?"

"Se liga nesse aí", disse, de olho num rapaz branco, alto, cabelos escuros, que vinha caminhando de cabeça baixa, como se quisesse passar despercebido.

Eu ainda sorria quando me concentrei nele. Antes de o baque dos segundos seguintes me deixar atordoada e sem chão sobre o qual cair.

"Que foi?", indagou Cíntia, ao ver a expressão em minha face.

Eu não sabia o que dizer, embora agora soubesse tudo. De fato, ainda me pergunto como teria sido a vida, a minha vida, depois daquela noite, se a gente tivesse chegado antes aos taxistas, ou se tivesse ficado mais uns minutos na boate, ou se eu tivesse aceitado o ecstasy que aquele garoto — Diego, se não me engano —, com um sorriso aberto, tentava botar em minha boca, enquanto a gente dançava. Qualquer cenário alternativo parecia melhor. Embora esse fosse um pensamento idiota, em todo caso. Afinal de contas, não foi Mike que mudou a minha vida, que acabou com todos os meus sonhos, que me afastou de todos os que um dia já amei. Não, não foi ele. Foi a realidade devastadora que eu ignorava e que passei a conhecer no instante em que entrei em sua cabeça.

"O que foi, Bel?"

Olhei para Cíntia e voltei-me de novo para Mike, que agora já havia passado por nós duas, sem nos notar. Senti que precisava falar com ele. Precisava colocar em ordem meus pensamentos, todas aquelas novas informações. Ou precisava acordar logo, também pensei, caso estivesse dormindo e aquilo fosse um sonho, nada além de um sonho.

A aurora dos deusesOnde histórias criam vida. Descubra agora