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Tóquio.

HARUTO KOBAYASHI estava na casa de seu amigo Jiro desde 2h30 da tarde. Já eram 9h da noite e Haruto, Jiro e Kazuki ainda estavam no quarto de Jiro jogando Naruto Shippuden: Ultimate Ninja Storm 4 no modo de confronto entre dois jogadores. Jiro havia comprado o jogo naquela tarde e chamara os amigos para jogarem, e é claro que eles aceitaram na hora, sobretudo Haruto, o mais pobre dos três, que não podia ter todas as coisas que os pais de Jiro davam ao filho. Os garotos ainda estavam tentando pegar todos os macetes do jogo. Naquela rodada, Haruto estava de fora, enquanto os outros se enfrentavam, Jiro jogando com Tobi, Kazuki com Yamato.

Haruto assistiu a um pouco da luta, na qual Kazuki ia levando a melhor, então foi ao banheiro. Já lavava as mãos, olhando-se no espelho sobre a pia em que a água descartada era redirecionada para o vaso sanitário, para ser usada na descarga, quando de repente se sentiu deprimido. Por que não podia ter mais? — perguntou-se. Por que não podia ter o que tinham tantas pessoas incapazes de fazer as coisas prodigiosas que ele fazia?

Já havia se passado um ano. Um ano desde que descobrira que era capaz de atravessar objetos sólidos, feito um fantasma, ou fazer objetos sólidos atravessarem outros. De alguma forma, Haruto conseguia agir sobre a matéria num ponto localizado de um grande objeto ou estrutura, ou em todo um objeto específico, desmaterializando-o, neutralizando a velocidade molecular ali — o movimento das partículas ali —, praticamente eliminando a massa local e tornando o objeto ou a estrutura permeável a outra de constituição molecular inalterada. Era um espírito de carne e osso. O que era incrível. O que poderia torná-lo rico e admirado, talvez até mesmo temido, se as pessoas soubessem de seus poderes.

"Essas habilidades", lhe disse o pai, depois que Haruto lhe contou tudo e mostrou-lhe tudo — o pai boquiaberto diante das proezas realizadas pelo filho — "podem lhe custar a vida, antes que lhe permitam desfrutar dos benefícios que poderiam lhe trazer."

O Sr. Kobayashi era um homem culto, um professor, embora nunca tivesse sido um homem de muitos recursos. Era familiarizado tanto com a cultura asiática quanto com a dos países do Ocidente. E a descoberta dos incríveis poderes do filho fizeram com que lembrasse de uma história: o mito de Giges mencionado n'A República, de Platão. Trata-se, esse Giges, de um pastor que um dia encontra por acaso um misterioso anel. Ao descobrir que esse anel lhe confere o poder da invisibilidade, Giges não demora a ceder à tentação de praticar vários atos condenáveis, inclusive criminosos, confortado pela consciência de que ninguém podia vê-lo, ninguém podia saber o que fazia. E assim, impune, chega a seduzir a rainha e a matar o rei, tomando o poder. Como o Sr. Kobayashi explicou ao filho, Platão inclui essa história em sua obra porque ela nos leva a uma importante autoindagação: até onde seríamos capazes de ir, de chegar, se soubéssemos que poderíamos sempre ficar impunes?

"E de que adianta ter esses poderes", perguntou a Haruto, "se eles roubarem sua honra, deturparem sua moral, sua ética?"

Portanto, poder fazer, ensinara o pai, não significava dever fazer. O homem, fosse qual fosse o seu potencial ou a sua capacidade, não estava isento de responsabilidade por suas ações, nem deveria deixar de se pautar por uma conduta visando a agir corretamente. Sempre. Pois o poder jamais traz honra, mas sim o agir de cada indivíduo. Lições que Haruto ouvira do pai e que, mesmo a contragosto, tivera de aceitar como uma regra a ser seguida. O pai estava certo, afinal de contas, ele sabia. Era mesmo preciso saber viver retamente. Entretanto, uma vida honrada muitas vezes custava caro, Haruto pensava, triste, ressentido.

Somente quando já se aproximava do quarto de Jiro se deu conta do súbito silêncio que pairara sobre a casa. Já não ouvia os ruídos do jogo vindo de dentro do quarto nem as vozes ou os movimentos dos pais de Jiro nos cômodos lá embaixo. Já não se ouvia sons vindo do quarto fechado de Yumi, a irmã dele. "Estranho", pensou. E apertou os passos rumo ao quarto, onde encontrou os dois amigos caídos no chão, defronte à grande tela plana, em que já não se via mais nenhuma cena do jogo. Tudo apagado.

Haruto correu até Jiro e Kazuki, sacudiu seus corpos inertes, chamou seus nomes, gritou-os. Não adiantava. Estavam mortos, ambos. O mais bizarro: os corpos estavam gélidos. Pareciam recém-tirados de um freezer. Seus membros rijos, os músculos duros feito pedra, o tecido escuro, muito escuro, no nariz, nos lábios, em baixo dos olhos, nas mãos. Havia mesmo um clima mais frio no ambiente, ele notara já ao entrar ali. Mas não tão frio. Pelo menos, não mais. Como explicar aquilo? Como entender aquilo? Jiro e Kazuki...

Haruto se lembrou dos outros. Correu até o quarto de Yumi e chamou-a. Não houve resposta. Ele então gritou pelos pais de Jiro. Nada. Silêncio apenas. Ato contínuo, atravessou a porta do quarto de Yumi — aparentemente, cruzou-a como se fosse um espectro, embora o mais preciso fosse dizer que a porta é que era o espectro, pois era ela, não seu corpo, que já não era sólida no exato segundo em que ele passava através dela. Lá dentro, se deparou com a garota. Os cabelos negros, lisos, à altura dos ombros, a pele clara — já não tão clara, também gangrenada em vários pontos. Tinha apenas 13 anos de idade. Tinha.

A essa altura já imaginava que os pais de Jiro haviam tido o mesmo destino. Estava certo. Encontrou a mãe de seu amigo caída no chão da cozinha, onde preparava o jantar. O Sr. Watanabe estava na sala de TV, o corpo endurecido ainda sentado no sofá, os olhos voltados para a tela à sua frente, onde já não se via mais nada. Alguém desligara o aparelho.

"Boa noite, Kobayashi-san", disse o homem, em inglês, apenas tentando soar menos indiferente à cultura japonesa na forma escolhida para se dirigir a Haruto.

O rapaz olhou na mesma hora na direção do negro forte, de pé ao lado de um japonês de uns trinta, trinta e poucos anos, que encarava Haruto como se olhasse para uma parede na qual nada de significante se via.

"Meu nome é Malcolm Crowe. E este aqui é o Sr. Kazuo Akamatsu, meu associado."

"Por que fizeram isso com essa família?", perguntou em japonês, dirigindo-se a seu compatrício. "Por que fizeram isso com meus amigos?"

Haruto não chegou a esperar por uma resposta. Esboçou um ataque, um avanço na direção deles, mas Kazuo parecia preparado. Pôs-se logo à frente de Crowe, como se fosse seu segurança, e olhou para o piso, bem onde Haruto estava, de onde imediatamente se ergueu uma rocha de gelo de meio metro de altura, aprisionando os pés do rapaz.

Haruto ficou surpreso com aquilo. Aqueles dois não eram normais, compreendeu. Mas ele também não era. O que queria dizer ao menos que eram como ele — isto é, no sentido de serem diferentes, especiais. Embora o gelo só cobrisse seus pés, imobilizando-os, Haruto já sentia a temperatura baixar drasticamente dentro de seus tênis. Foi quando olhou para o outro japonês com um olhar desafiador e simplesmente saiu do gelo, como se ele não existisse, onde aliás não deveria mesmo existir.

Kazuo, porém, não demonstrou surpresa alguma diante do que ele acabara de fazer. Na verdade, seu semblante demonstrava tranquilidade. Nele não era possível avistar nenhum sinal de receio ou apreensão. Foi nesse instante que Haruto sentiu seu corpo dominado por alguma força externa. Algo que — só então percebeu — vinha do negro, que o encarava de olhos arregalados. Sentiu um calafrio, antes mesmo de ouvir a voz de Crowe dizer, ainda em inglês:

"O senhor vai conhecer sua própria história agora, Sr. Kobayashi. E, após conhecê-la, lhe garanto que vai entender porque a vida dessas criaturas abatidas aqui hoje não significam nada do que por ora, aos seus olhos, ainda parecem significar."    

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⏰ Última atualização: Dec 29, 2016 ⏰

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