Seria esse o começo?

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O sol já havia surgido no horizonte quando finalmente fechei o último da pilha de livros que eu havia passado a noite lendo. Meus olhos ardiam e estavam pesados e ao me levantar pude ouvir meus ossos protestarem por ter ficado na mesma posição por tanto tempo. Minha musculatura pedia descanso e a mente custava a se fixar em mais uma linha de leitura sequer, os olhos se desfocavam cada vez mais e os sons...os barulhos vindos de fora, barulhos de treinamento. Meu irmão provavelmente já estaria de pé em sua armadura de guerra, treinando com uma dúzia ou duas de soldados.

Eu não sou tolo, sei que fisicamente eu não possuo tanta destreza, minha chama ainda é fraca e tenho certeza que ainda será inferior a de Cal quando formos mais velhos. Mas ao contrário de meu irmão mais velho, eu sei que uma cabeça bem usada pode muitas vezes superar as habilidades corporais, força bruta pode ser sua ignorância se comparada à uma mente desperta e bem treinada. Como Ardente, meu pai tende a considerar mais seu lado físico e de poder, teve que aprender porém a jogar o jogo da corte,como costuma dizer minha mãe. Nem tudo se resolve na arena, nem tudo acaba com roupas destruídas e rostos sujos de fuligem. Talvez o fato de ser filho de uma Merandus me faça pensar assim, talvez ter minha mãe sempre por perto me ensinando a como transformar minha mente em uma arma me dê coragem e forças suficientes para enfrentar o dia a dia, para aparecer e enxergar a verdade por trás de tudo que penso ou faço.

Minha mãe sabe, eu sei que ela sabe disso. Eu vejo seus olhares direcionados ao meu pai quando este fala com Cal, eu até mesmo vejo o modo com ela mesma trata o meu meio irmão, com uma certa indiferença e talvez frieza. Ela é uma rainha, e é murmuradora eu sei, mas minha mãe sabe ser uma mulher doce. Pelo menos ela é comigo. As vezes até parecia que ela queria me proteger de algo, os olhares curiosos da corte, o meu poder, as guerras... Mas as vezes eu sinto que ela quer me proteger de mim mesmo. Do peso carregado por meu nome, por ser quem eu sou. Quer dizer, Cal é o primogênito e príncipe herdeiro, toda honra e glória é direcionada a ele mesmo nessa idade. Ele é quem caminha ao lado direito de meu pai, ele é quem fala após ser dado a permissão, ele é o procurado não eu.
Eu sou um príncipe ardente, meu nome com certeza estará escrito na linhagem dos Calore mas em um canto qualquer ao lado do imponente nome do futuro rei, não reparam se me é dado algo diferente de um aceno de cabeça e simplesmente me julgam por ser filho de Elara Merandus.

Sim, são criaturinhas venenosas e arrogantes. Ousam difamar o nome da rainha, são todos falsos, duas caras e mentirosos. Ninguém diz a verdade, ninguém mostrar ser o que realmente é. Podem odiá-lo o quanto for e mesmo assim farão de tudo para demonstrar devoção a você, agora entendo o que minha mãe diz sobre essas pessoas. Ser parte das sombras as vezes não é tão ruim, não ser visto ou lembrado pode trazer alguns pontos positivos, quando acham que ninguém mais está vendo ou prestando atenção, garras são expostas e veneno é jorrado. As máscaras caem e ninguém percebe o quão vigiado está sendo até ser pego de surpresa.

-Lendo novamente querido?

A postura perfeita de minha mãe toma conta do espaço em que me encontro, ela consegue ser esse tipo de pessoa, chama atenção por onde passa, marca qualquer canto que pise. Um dia talvez eu seja como ela, nobre.

-Nada demais mãe, reconsiderando alguns relatórios do rei.

-Você quer dizer do seu pai.

Seu tom firme me diz que não é uma pergunta, é quase uma bronca pelo modo que falei.

-Isso, do meu pai.

Não consigo manter o olhar e simplesmente passo a juntar minhas coisas, guardar os papéis espalhados e fechar os livros, minha mãe se aproxima devagar, quase silenciosamente.

Maven querido, fale comigo.

Fazia algum tempo desde que ela tentara falar comigo mentalmente e ouvir sua voz em meio aos meus pensamentos me assustou um pouco.

Está tudo bem, mãe.

Não parece estar, eu o gerei Maven, acha que não saberia quando algo está errado?

Esse é um problema de sua mãe ser Elara. Como toda maé ela é observadora, mas o fato de ter acesso a sua mente faz com que ela seja dez vezes mais atenta à você, seus pensamentos, atitudes, seu jeito de se comportar e até suas emoções.

Ele está treinando novamente. O dia mal surgiu e Cal está na arena, eu sei que ele é bom e sei que também sou bom em muitas outras coisas mas...

Mas...

Sua voz doce me incentiva a continuar, incentiva não, ordena. Eu conheço parte de seus truques e seduzir a mente é o mais usado.

Mas eu só queria...só queria ser notado como ele. Eu queria ser parabenizado mãe, queria que me dissessem o quão bom sou e algo ou o quanto o reino estaria bem em minhas mãos. Eu queria, só por uma vez, ser tratado como o filho da coroa, ser reconhecido pelo meu rei e pai, ver meu nome sendo dito não apenas para receber ordens.

Egoísmo, inveja, carência... Chame do que quiser, mas era a verdade, era o que eu sentia naquele momento, era o que eu sentia em vários outros momentos. Eu queria ter coragem e força, queria ser um guerreiro talentoso e queria ser reconhecido como fazem com Cal.

Você é reconhecido como filho da coroa Maven.

-Da sua coroa mãe! Maven filho de Elara. É isso que sou. Não sou 'Maven filho de Tiberias', sou sempre o "Irmão de Cal", "Segundo príncipe na linha de sucessão", "O filho da Rainha". Até quando isso pode durar? É querer muito que saibam meu nome?

Eu estava transtornado, magoado e falando alto, não conversava mais em pensamentos com minha mãe. Só consegui perceber isso quando bati o punho cerrado na mesa e derrubei alguns livros, meu pulso reclamou e fiz uma careta. Até mesmo meu corpo era ciente de minha fragilidade. Que piada, um príncipe frágil. Que futuro estaria a espera de um prateado tolo assim?

-Ouça Maven - a voz de minha mãe saiu tranquila e suas mãos seguraram as minhas com certo carinho. Mas seus olhos, havia algo por trás de seu olhar firme, algo como promessa e talvez voracidade - Não cairá no esquecimento de ninguém, será lembrado Maven, não apenas por ser meu filho, mas por seus grandes feitos. Você será exaltado e porá de joelhos cada mísera pessoa que um dia duvidou de sua capacidade, seu nome será espalhado até as terras mais inóspitas de Norta e até Lakeland ouvirá falar de você. Você será reconhecido meu filho, confie em mim e tudo ficará bem. Confie em mim e você não será mais esquecido.

E é pensando nisso, em suas palavras carregadas de certeza que eu concordo com a cabeça. É confiando em minha mãe que saio daquela sala de cabeça erguida, pronto para enfrentar o que estiver por vir.

'Tudo para que a sombra derrote a chama'.

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Este capítulo foi baseado nos seguintes fragmentos do livro de A Rainha Vermelha :

"-Pobre Maven, o segundo príncipe. A sombra da chama do irmão. Uma coisinha fraca, destinado a ficar de lado e se ajoelhar.
[...]
-Noivo de uma garota com os olhos em outro, no irmão, príncipe que ninguém é capaz de ignorar.
[...]
-Você tomou tudo que deveria ser meu Cal. Tudo." - pag 379/380.

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