[2] O Rubro Vinho

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A luminosidade alaranjada do pôr do sol invadia o interior do local em rajadas que batiam nas prateleiras de livros velhos e empoeirados. O vento, por sua vez, entrava pela janela e fazia levantar as folhas de papel em cima da mesa.

De cabeça abaixada por entre as mãos, olhando fixamente para os papéis e para a caneta tinteiro a sua frente, Dégel tentava bolar uma desculpa para dar ao Grande Mestre. Sem sucesso. Durante todo o resto daquela tarde, não havia conseguido escrever nada. Logo que começava, se perdia e jogava o papel rasurado no cesto de lixo, começando tudo outra vez. Nunca antes havia deixado algo pela metade. Desesperou-se.

Culpou o cansaço, já que não havia dormido desde que chegara aquela manhã, estava com o sono acumulado há quase três dias por causa daquela bendita missão. O Mestre do Santuário lhe disse mais cedo que tinha urgência em saber como ele havia se saído, para que pudesse tomar as devidas providências o quanto antes sobre os desaparecimentos das pessoas daquela ilha. Então, olhando para a folha em branco, pela primeira vez na vida, o aquariano pensou em mentir, inventar alguma história que justificasse ele não ter feito o que o mestre lhe pediu.

Poderia dizer simplesmente que por algum motivo estranho, perdera a memória temporariamente e não se lembrava de nada do que havia acontecido por lá, mas descartou tão logo concluiu que isso só faria com que tivesse que retornar àquela ilha, e também, que aquela poderia parecer uma desculpa um tanto quanto esfarrapada. Definitivamente, aquela não era uma boa ideia. Ele sabia que teria que voltar, uma hora ou outra, porque não havia descoberto todos os mistérios daquele lugar, mas se dissesse tal mentira ao mestre, subjugaria sua inteligência e talvez tivesse que retornar à missão na manhã seguinte.

Droga! Por que não estava conseguindo fazer algo tão simples quanto relatar o que aconteceu? Na verdade, ele sabia exatamente o porquê de estar tão desfocado como nunca estivera antes, era porque simplesmente não conseguia tirar a imagem de Kardia da cabeça de jeito nenhum, mais precisamente, não conseguia tirar aquele sorriso torto de sua da mente. Aquele jeitinho que o escorpiano sorria o deixava completamente desconcertado, e nos últimos dias, ele não estava conseguindo disfarçar isso muito bem, era só um descuido de sua parte e, de repente, se pegava fitando o parceiro de forma inusitada.

Tal situação acontecia quando todos os santos dourados eram convocados ao salão do mestre, onde precisavam se posicionar por ordem das constelações, e mesmo estando distante, Dégel tinha que fazer um esforço tremendo para não corresponder às encaradas descaradas do outro na fila da frente, no final, acabava sempre tendo que perguntar ao Sísifo o que mesmo o mestre havia dito, recebendo em troca, uma risadinha descrente do sagitariano, afinal, aquilo só poderia ser uma tentativa de fazer graça do aquariano ali ao lado, claro!

Ou então, quando estavam na área de treinamento em que era obrigado a lidar de frente com o engraçadinho de escorpião; o que era pior, ele se envergonhava sempre quando era flagrado cometendo aquele delito de se perder naqueles olhos, naqueles lábios... E quando Kardia lhe perguntava meio alheio "O que foi Dégel?", ele não sabia o que responder e se via obrigado a se afastar do outro antes que se fizesse entender errado.

Talvez fosse por isso que Kardia estivesse lhe perseguindo tanto nos últimos dias, talvez, ele tivesse percebido que o francês estava tentando se afastar de todas as maneiras. Só podia se isso, pois, até mesmo nos treinos, Dégel trocara ele pelo Cavaleiro de Câncer, Manigold. É, não era uma troca lá muito boa, o italiano se mostrava um rival um tanto afobado, convencido e irônico, mas era o único disponível para a troca nas últimas semanas.

− Ah! Devo estar enlouquecendo. – Se deixou afundar na cadeira pousando uma mão na testa.

Aquele foi o dia em que o cavaleiro mais aparecera em sua casa para lhe atormentar de alguma forma. Seja para contar suas histórias mirabolantes, mostrar artefatos esquisitos que encontrara em suas missões, se gabar de suas maçãs gigantes ou apenas para fofocar que adoraria saber por que o cavaleiro de Sagitário não saia da 10ª casa desde ontem à noite.

In Vino Veritas | Kardia x DégelOnde histórias criam vida. Descubra agora