[4] De Face Rúbida

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A lua já estava alta e pequena no céu sem estrelas, coberta por nuvens insistentes que teimavam em ofuscar o seu brilho, ela tinha, sozinha, a missão de iluminar aquela noite. A brisa fraca, mas ainda presente na atmosfera, vinha brindar à beleza de Nyx¹. Brisa esta que fazia remexer todos os fios azulados do cabelo daquele jovem sentado à escadaria do templo de escorpião.

Ele atirou mais uma maçã mastigada na pilha de frutas ao seu lado fazendo com que ela rolasse - pois já havia muitas maçãs naquele monte - e caísse em um dos degraus mais à frente.

Com os joelhos levantados, apoiava o cotovelo em um deles e a mão no queixo. Trajado de sua armadura, estava sentado no último degrau que dava acesso à entrada do templo. Suspirando vez ou outra, completamente tomado pelo tédio e empanturrado de maçãs. Kardia mirava o horizonte sem realmente prestar atenção em nada. Estava de guarda naquela noite, mas nunca estivera tão disperso como estava naquele momento. Havia se posto a pensar um pouco mais além do que o costume, e a conclusão que chegara não lhe agradou muito.

Pensava em Dégel e em como ele andava distante e distraído nos últimos dias. Tinha sido trocado e não gostara nem um pouco disso. Possessivo? Sim! Sentia um incômodo sempre que o via conversando com aquele Italiano, e até mesmo rindo? Como assim rindo?! Foi breve, mas ele pôde perceber. Naquele dia que subiam a escadaria das doses casas, quando o treinamento de todos já havia cessado, Kardia aproveitou que o cavaleiro de touro subia à sua frente e se escondeu atrás dele como podia para conseguir observar melhor aquela interação suspeita. Ele viu que aqueles dois continuavam conversando, e mesmo distante, pôde perceber que Dégel havia achado graça de alguma coisa que o canceriano falara.

Tomado por uma, digamos, curiosidade, foi tirar satisfações com o italiano no mesmo dia, e por mais que tenha ouvido que câncer apenas estava tentando promover o espirito de equipe, não se contentou, logo se viu falando em tom ameaçador com o mais velho. No entanto, este apenas retribuiu com uma piscadela, dizendo que o grego poderia se surpreender qualquer dia desses. Típico charlatão, propôs mais uma de suas apostas com o grego.

Mas a realidade era que o fato de o escorpiano sempre tentar ficar ao lado daquele cubo de gelo, e também que era sempre ele quem ia atrás, começava a incomodar. Ele costumava usar a velha desculpa que, de certa forma, se sentia compelido a agradecer pelos serviços prestados por ele. Se não fosse pelo aquariano, já poderia ter batido as botas há muito tempo em seus momentos febris, e definitivamente, não era dessa forma que ele desejava morrer.

A verdade era realmente essa, ele sempre quis mesmo era ficar ao lado de Dégel, mesmo que não tivessem nada para fazer ou falar. Apenas queria ficar ali, na biblioteca dele de preferência. Assim como naquela vez que chovia forte, e insistente como só Kardia poderia ser, esperou ali mesmo aquela tempestade passar, sentado em frente ao francês e silenciosamente observando ele ler tranquilamente um daqueles seus livros enormes.

Desde quando o mais velho chegara ao santuário, há alguns anos atrás, o escorpiano parecia perder parte da sua naturalidade quando estavam perto um do outro. Sempre fazia questão de procurá-lo para treinarem juntos, e não perdia a oportunidade de fazer piadas sobre o jeito de ser do aquariano. Se divertia imensamente fazendo isso. E pensar que naquele santuário era raro ele sentir prazer em alguma coisa que não fosse treinar e comer suas maçãs – já que se embebedar era estritamente proibido pelo mestre. Mas, tirar do sério aquele menino de cabelos verdes que sempre parecia ser uma inabalável montanha de gelo engomadinha, se tornou ao longo do tempo o seu melhor passatempo.

Não se importava muito com o modo que era tratado por ele quando finalmente conseguiu o que queria, em outras palavras, se fosse outra pessoa mandando-o calar a boca, expulsando-o de seus aposentos e desdenhando de suas ideias, Kardia já teria mandado para o raio que o parta há muito tempo! Mas quando se tratava dele, o grego simplesmente adorava vê-lo irritado. Aquilo era uma vitória para si, uma espécie de troféu que tinha que conquistar a cada dia, pois, ninguém mais conseguia tirar o mago do gelo do sério do jeito que Kardia o fazia.

In Vino Veritas | Kardia x DégelOnde histórias criam vida. Descubra agora