[1] Vermelho Maçã

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Colocou os óculos sobre a mesa suspirando profundamente ao ver que pela centésima vez naquele dia seria interrompido pelo guardião da oitava casa.

Algumas maçãs rolaram pela porta, quando o saco que ele carregava nas mãos caiu no chão.

— Mas que droga! — Resmungou, endireitando-se da entrada desastrosa na biblioteca da casa de Aquário.

Dégel observava a cena com as mãos apoiando o queixo e o costumeiro olhar glacial. Levantou disposto a ajudar a recolher todas aquelas frutas que se espalharam pelo assoalho e tratar de chispar dali aquele ser inconveniente o mais depressa possível, do contrário, não conseguiria terminar a tempo o relatório que o Mestre havia lhe pedido.

— O que você quer agora, Kardia? Pensei que tivesse dito que ia dar uma volta por aí — Abaixou ao lado do homem que, desesperado, tentava pegar as maçãs antes que rolassem para debaixo dos móveis.

— Eu precisava te mostrar isso Dégel, estas belezinhas aqui eu consegui em Rodório. Não são, simplesmente, as maiores maçãs que você já viu? — Virou o rosto entusiasmado, exibindo um sorriso inocente.

O de cabelos esverdeados revirou os olhos colocando as maçãs que pegara de volta no saco. Levantou pousando uma mão na cintura e olhando para ele, consternado. Já estava farto de todas aquelas intromissões e, além do mais, suas obrigações para com o seu companheiro de batalhas já haviam sido cumpridas naquele dia.

A pedido do Grande Mestre, o aquariano ia ao socorro de Kardia sempre que este começava a apresentar seus delírios febris, devido ao seu problema cardíaco. O coração dele se aquecia a tal temperatura que era capaz de leva-lo à morte. Dégel sabia da gravidade do problema do seu amigo e, justamente por isso, pela manhã, ele já havia ido até a casa de Escorpião para esfriar seu corpo, portanto, não lhe devia mais nada.

Permaneceu estático enquanto analisava mais atentamente o homem agachado a sua frente. Os cabelos caiam pelo contorno do rosto fazendo com que, por vezes, ele balançasse a cabeça desajeitadamente para afastar a franja dos olhos, a roupa que trajava ainda era a mesma que o vira pela manhã, a única diferença era que agora ela parecia estar muito mais suja, como se ele tivesse caído na lama ou coisa assim. Contava cada maçã que colocava de volta dentro do saco, distraído.

O Francês permaneceu naquela posição, fitando o companheiro por um tempo que não soube precisar. Só voltou a si quando Kardia o encarava de volta, de pé e balançando a mão para lá e para cá na frente dos seus olhos.

— Ei, Dégel! Tem alguém aí? — gritou com as mãos em forma de concha, bem próximo ao ouvido dele.

Saindo do transe, deu a volta pela mesa e sentou novamente, tentando disfarçar um leve rubor que afogueava suas faces ao ser flagrado olhando para ele daquela maneira.

— Ora, são apenas maçãs Kardia! De que importa o tamanho se de qualquer forma elas irão parar no seu estômago mesmo?! — Respondeu com uma sobrancelha levemente arqueada, aquela que Kardia achava graça porque era o máximo de expressão que ele fazia quando estava irritado.

— Olha só, rato de biblioteca, é simples: quanto maior elas forem, mais tempo eu poderei passar saboreando essas delícias... hmm — Mordeu uma enquanto se sentava, displicente, em cima da escrivaninha, bagunçando todos os papeis que estavam empilhados ali, sem deixar de encarar de forma desafiadora os orbes esverdeados do aquariano.

Dégel arregalou os olhos diante do comentário, tentando sem muito sucesso virar o rosto para não contemplar aquela carinha de deleite que o outro fazia ao morder aquela fruta. Corou violentamente dessa vez ao se pegar pensando, mesmo que por um segundo, que ele gostava de observar as expressões do mais novo.

— Por que você está me olhando assim, por acaso quer um pedaço? — perguntou, estendendo a maçã em sua direção, sorrindo e lambendo o lábio inferior.

Reunindo um tanto de paciência que ainda restara, apoiou as mãos fechadas na mesa, suspirando ao levantar da cadeira para encarar melhor aquele descarado.

— Não, eu não quero nenhum pedaço e, Kardia, a única coisa que quero é concluir esta tarefa, que aliás eu nem comecei! Se você não se importar, poderia gentilmente se retirar? O Grande Mestre me pediu para entregar isso aqui antes do pôr do sol e como eu te contei mais cedo, minha última missão na Ilha de Ramatnov foi bastante cansativa, então eu ainda tenho muito trabalho a fazer. — Fez um gesto em direção à porta tentando parecer calmo e educado.

Apesar de, em seu mais profundo íntimo, sentir um estranho misto entre raiva e entusiasmo sempre que via aquele sorriso irônico estampado na face de Kardia, aquele mesmo que o outro sempre deixava escapar quando percebia que com êxito conseguia tirar o aquariano do sério.

O grego, por sua vez, lançou um olhar atrevido e foi em direção a uma poltrona, se jogando nela de qualquer jeito, o que fez com que alguns livros que o aquariano havia deixado no braço da poltrona — já que em sua mesa não cabia mais nada — caíssem no chão, arrancando um resmungo por parte do dono.

— E o que é que eu vou fazer, então? Até ontem eu tinha um pupilo a quem socar, mas o Mestre fez questão de tirar o Yato da minha tutória e passar para o Sísifo — disse, cruzando os braços e fazendo a já conhecida cara de emburrado.

Sentindo que sua paciência, até então inabalável, estava indo por água a baixo, Dégel respondeu com um tom de voz mais elevado que o seu costumeiro sereno.

— Você há de convir comigo que isto não é necessariamente um problema meu, certo?

Ignorando tal grosseria, Kardia olhou para ele erguendo um dedo no ar e mordendo o lábio, como se acabasse de ter uma tremenda ideia.

— Ei, que tal eu ficar aqui quietinho enquanto você termina a sua tarefa, hã? Posso tentar ler um desses seus livros empoeirados que você gosta tanto, quem sabe eu consigo chegar ao segundo capítulo sem dormir?! — Sorriu um sorriso enviesado pegando um dos livros do chão e fitando os olhos já furiosos do outro, mas ao perceber que o homem a sua frente cerrava os punhos enquanto dava a volta na mesa indo em sua direção, deu um sobressalto, pressentindo que o melhor a se fazer era tratar de sair rapidamente dali. Já havia visto Dégel perder verdadeiramente a paciência antes, e aquela não tinha sido uma experiência muito boa. Não mesmo.

— Tá bom... tá bom... Já estou saindo ok?! — Pegou suas maçãs que estavam no chão perto da poltrona e correu dali apressado rumo ao 8º templo. Uma sombra de sorriso no rosto.

Dégel esperou que ele saísse, acompanhando-o com o olhar, sentou, fechou os olhos e suspirou profundamente. Quando os abriu, olhou pela janela e viu que as nuances roseadas do céu anunciavam que tão logo o pôr do sol chegaria, então, decidiu que iria terminar de uma vez por todas aquele relatório. Mas porque será que mesmo passado alguns minutos que o cavaleiro de escorpião deixara sua casa, ainda sentia todo aquele formigamento esquisito pelo corpo?

In Vino Veritas | Kardia x DégelOnde histórias criam vida. Descubra agora