DOIS

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Lilian encostou-se contra o tronco robusto de um carvalho e suspirou profundamente, tentando desacelerar a respiração e o martelar do coração em seu peito. Tentando fazer cessar as vozes em sua mente e, principalmente, parar de se sentir tão apavorada. Não havia motivo para aquele sentimento. O que temia? Nem ela mesma saberia dizer.
Mas a cada segundo ficava mais escuro e, isso sim, a escuridão, a assustava. Nunca se sabe o que pode surgir das sombras.
     Na sua frente, Claire a observava mantendo certa distância. Lilian não era a única assustada ali. Mas Claire amava a irmã e por cima do mix estranho de confusão e medo, havia preocupação. Então ela se aproximou e a abraçou. A abraçou forte mesmo que Lilian nem sequer erguesse o rosto para olhá-la ou a abraçasse de volta. Sustentou aquele abraço por alguns minutos, antes de dizer: — Tudo bem, Lili. Não precisa me contar, eu ainda acho que não há nada errado com você. — seu tom era terno, embora estivesse mentindo. — Mas precisamos ir embora daqui, Lili, eu não gosto do escuto.
— Eu também não. — Lilian a fitou, o azul de seus olhos brilhavam de uma forma sombria. Talvez fosse o modo como a sombra dos galhos da árvore escureciam suas feições. 
       A garota de capuz vermelho suspirou profundamente uma última vez antes de pegar a mão da irmã mais nova e caminhar, apertando o passo. Se Claire não estivesse tão cansada e visivelmente assuntada, Lilian iria insistir para que corressem, mas não o fez.
Seguiram caminhando o mais rápido que podiam com os pés doloridos e o peso das cestas que levavam consigo, cheias de doces, compotas, geléias e outras coisas mais que a mãe havia preparado para a vovó.
      Os galhos e folhas secas se espatifando sob seus pés, o cricrilar dos grilos e os sussurros do vento formavam uma trilha sonora um tanto assustadora enquanto a lua prateada surgia no céu escuro e as guiava.
Quando chegaram, finalmente, ao povoado, Claire pareceu esquecer que seus pés doiam e correu apressada, segurando sua cesta e gritando:
— Vovó! Vovó! Já chegamos!
Seu coraçãozinho sentia alívio e ansiedade para abraçar a avó e sentir seu familiar cheiro de canela e madressilva. Também queria provar os biscoitos que sabia que estariam a sua espera, como sempre.
Diferentemente da irmã, Lilian diminuiu o ritmo, enquanto Claire corria a sua frente, ela se sentia grata por aqueles poucos minutos que teria sozinha.
      E foi ali, caminhando calmamente, sentindo a brisa fria da noite, ouvindo os ruídos cacofonicos da natureza e apreciando o gradativo desacelerar de sua respiração e de sua pulsação que ela o viu. Os grandes olhos vermelhos que encaravam-na, escondidos atrás da penumbra das árvores e quando seus olhos encontraram aqueles, seu coração saltou bruscamente e um grito escapou por entre seus lábios. Não podia acreditar no que via. Não podia ser real. Não ali, não agora. Bem diante de si estava o monstro que há anos lhe tirava o sossego, assombrando seus sonhos mesmo quando acordada. Aqueles olhos vermelhos como chamas ardentes que por tantas vezes já a fitaram, que por tantas vezes já a fizeram estremecer.
     Lilian parou onde estava, petrificada e trêmula, ao mesmo tempo. Suor frio umedecia sua testa. Cada fibra de seu corpo gritava para que corresse, a adrenalina gerada pelo medo corria em suas veias, intensificando a necessidade instintivamente primitiva de sair dali. De correr. Se salvar. Mas simplesmente não conseguia se mover, era como se houvesse esquecido como fazê-lo. Algo parecia fincar seus pés ao chão e ela não conseguia sair do lugar. Apenas o encarava de volta, esperando o seu avanço e quando o monstro avançasse, ela sentia, no mais íntimo do seu ser, que seria o fim.
     Os olhos dele então mudaram de cor. Como em um lampejo, o vermelho tornou-se dourado e Lilian finalmente reuniu forças maiores que o medo para sair dali, porém, bastou um passo. Um único movimento e a fera foi em sua direção. Veloz, rosnando, as patas batendo firme no chão de terra, os dentes pontiagudos expostos, reluzindo no luar prateado. Lilian sentia seu coração bater mais e mais rápido a cada segundo, tão rápido que parecia um cavalo cavalgando veloz em seu peito, prestes a saltar para além dela, prestes a parar bruscamente e para sempre. Um nó em sua garganta a impedia de gritar. Mas ele estava vindo. O monstro peludo de seus pesadelos. Com suas quatro patas e garras pontudas. Com seus olhos faiscantes e caninos pontiagudos. Com toda sua fúria e sede por sangue, pelo sangue dela. Pronto para cumprir aquilo que tentou anos antes. Era a hora da vingança. Ele saltou no ar, ela sabia o que viria a seguir: ele pularia em cima dela, a derrubando no chão, sua cabeça bateria forte e ela ficaria tonta, mas não desmaiaria, infelizmente, pois sentiria cada vez que as presas do lobo negro adentrasse sua carne macia, sentiria seu sangue quente escorrendo enquanto sua vida lentamente se esvaia e a fera a estraçalhava, seus rosnados ferozes ecoariam até os ouvidos dela e esse seria o último som que ouviria...
      No entanto, o que Lilian sentiu foi bem diferente. Em um momento, a fera monstruosa vinha em sua direção com toda sua fúria e sede sanguinária e, no segundo seguinte, uma mão tocava seu ombro, chacoalhando-a e chamando seu nome.
— Lilian? Lilian? Tem alguém aí dentro? Lilian?— a voz era familiar, o tom risonho nela também.
A garota piscou brevemente e quando se deu conta, não havia mais nada lá. Nada de lobo. Nada de perigo. Nada. Como se aquele momento nem sequer houvesse existido. Como?
Seu coração ainda pulsava com adrenalina, suas mãos suavam, gélidas e o sangue parecia ter parado de circular por seu corpo, estava mais pálida do que já era usualmente, e sua respiração tão tensa quanto cada músculo de seu corpo ainda petrificado no mesmo lugar, eram mais uma prova do que ela acabara de ver. Ele havia estado ali. Ele vinhera buscá-la. Como sumiu tão rápido?
     Virou-se, olhou para as árvores e para além, mas nada viu. Não havia monstro em lugar algum. Tudo o que seus olhos captavam era a escuridão do bosque, a lua prateada no céu negro e a sensação da mão dele, August, o Filho do Caçador, ainda em seu ombro.
— Lilian.— ele chamou outra vez.
Ela o encarou, por fim. Os olhos de August pareciam confusos por vê-la ali. O dourado parecia mais escuro a noite. Lilian não gostou de notar a cor dos olhos de August aquela noite, os olhos do rapaz eram como os dele  e isso fez um calafrio percorrer sua espinha.

— O que faz aqui à essa hora?
— Vim com Claire. Coisas para vovó. — ela mostrou a cesta, levantando-a um pouco e deu de ombros. Se esforçava imensamente para esconder o turbilhão que se passava dentro de si.
— Quer que eu a acompanhe até...?
— N-não é necessário. — Sua voz fraquejou. Tentou outra vez: — Não é necessário, só faltam alguns metros até lá. Mas obrigada, August.
— Me chamou de August? Oh, Senhor, seria um milagre o que acabo de presenciar? — ele soltou um riso abafado e sorriu para ela, em seguida, mas tudo o que Lilian notava eram suas faiscantes iris douradas a fitando de volta.

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SANGUE & NEVE (+16)Onde histórias criam vida. Descubra agora