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A sela escura era pequena e suja, se não fossem os cobertores que seu pai levara para ele, provavelmente August iria morrer de frio. Mas não se arrependia de ter ajudado Claire e Lilian, mesmo que uma delas nem sequer soubesse disso, não se arrependia porque Claire era como uma irmã para ele, e Lilian também já havia sido assim um dia, embora hoje, seus sentimentos por ela não fossem mais tão fraternos. Ele a amava. Faria qualquer coisa para protegê-la, até mesmo receberia a sentença por ela. E, o Rei não podia matá-lo. Se fosse condenado mesmo, sua punição seria outra, talvez até pior que a morte, mas Clóvis jamais o mataria. Fazia parte do acordo selado entre ele e Sébastien no dia que entregou o garoto ao pai.
A vida de August pelo silêncio e a coroa.
       Mas, ali, sentado no chão duro e imundo, usando os lençóis para aquecer seu corpo o máximo possível, não pensava em seu julgamento, absolvição ou condenação, nem mesmo se importava se iria ou não morrer. Sua preocupação maior era Claire, a garotinha tinha sobre os ombros o peso de um mundo que desmoronava. Também pensava em Lilian, seus olhos azuis e aquele sorriso raramente visto que fazia parecer que tudo valia a pena, os cabelos brilhantes, o que a simples presença dela o fazia sentir. Temia por ela, sempre soube que havia nela algo inexplicável, que nem ela própria compreendia, uma coisa que poderia destruir a ela e a todos a sua volta. August seria capaz de qualquer coisa para evitar mais tragédias, para protegê-la de si mesma, porque a amava e, por mais que Lilian negasse, ele sabia que lá no fundo aquele coração teimoso não o via só como um melhor amigo de infância.
      No entanto, como poderia ajudar as garotas agora, preso? E se fosse condenado, como protegeria Lilian? Como ajudaria Claire a sustentar o peso daquele segredo que compartilhavam? Maldito Baptiste! Johan empre quisera ferrar com sua vida, mas contar uma história que mal sabia e acusá-lo de assassinato... Ah, aquilo foi muito baixo! Maldito! Maldito!
August sentiu a raiva aquecer seu sangue, socou o chão repetidamente até os nós dos dedos começarem a sangrar. Tinha que reverter aquela situação!
Na manhã seguinte, Frédéric e Robert Lamartine, pai de Lilian e Claire, partiriam rumo ao palácio e não demorariam mais que três ou quatro dias para retornarem com os oficiais, August teria que pensar em algo. Alguma coisa grandiosa, um trunfo que pudesse usar para conseguir um acordo com Clóvis. Algo além do silêncio dele e de seu pai... Mas o que? O que o príncipe bastardo, vulgo filho do Caçador poderia oferecer ao grande Clóvis, o Impiedoso?

                               ***

Mais uma noite em que Claire não dormiu, pensando em August, na avó e em Lilian, enquanto abafava o choro no travesseiro e ouvia a irmã balbuciar trechos sem sentido de mais um pesadelo.
Quando o dia amanheceu, recusou o café, evitou os pais e a irmã o máximo que pôde até a hora do enterro. Só conseguia pensar em August naquela sela, mais um inocente sendo vítima das circunstâncias. Assim como ela.
          Ver a avó ser enterrada doeu como ela jamais pensou que seria capaz de suportar. Claire sabia que em Lilian, apesar de tudo, doía igual, então deixou que a irmã a abraçasse.
Depois da cerimônia fúnebre, quando a última rosa foi jogada e todos foram embora, seu pai montou o cavalo e partiu seguido por Frédéric Baptiste e Sébastien Jaggery rumo ao palácio.
— Você está proibida de ir visitar August, entendeu? — a ordem era clara, a garotinha balançou a cabeça em concordância. Mas bastou os cavalos sumirem de vista, para que ela corresse para a casa e começasse a pensar em uma forma de chegar até August sem que a vissem. Teria que ser a noite, depois que a mãe e Lilian dormisse. Teria que ser corajosa, o escuro sempre a apavorou, ainda mais no inverno. E um grande manto branco de neve já cobria tudo, como um tapete fofo forrado pela natureza.
          Claire passou o resto do dia no quarto, assim como a irmã mais velha. Chorando. Pensando. E em silêncio. Era estranho ainda estar na casa da avó sem a presença dela. Era como estar violando algo, mal via a hora de poder voltar para a casa.
        Ao anoitecer, a mãe levou jantar para elas no quarto, nenhuma das duas tinha apetite. E o seu prato, Claire guardou, esperou a mãe deitar e levantou-se, foi até a cozinha e colocou a comida em um recipiente com tampa. August, sim, devia estar faminto. Voltou para o quarto, Lilian estava distraída de mais em seus devaneios para notar o jeito sorrateiro que a irmã entrou, com as mãos para trás, escondendo algo nas costas. Claire pegou a cesta vazia que trouxera com geléia e doces para a avó, e dentro colocou a vasilha que trazia em mãos e também um de seus cobertores, em seguida escondeu a cesta em baixo da cama. Agora era só esperar Lilian dormir para que pudesse sair.
Em sua mente entoava um pedido aos  céus para que não fosse Johan o responsável por vigiar a sela, sabia que os rapazes estavam se revezando nessa tarefa. Também pedia coragem e proteção para quando saísse no escuro.
        O tempo que levou até Lilian adormecer mais pareceram uma eternidade. Claire até fingiu já estar dormindo, para ver se isso ajudava a irmã a fazer o mesmo de uma vez. Mas, quando enfim, ouviu a respiração suave de Lilian e levantou-se para ter certeza de que ela estava dormindo, Claire sentiu um frio na barriga. Seu estômago revirava, suas mãos suavam, gélidas. Estava na hora. E infelizmente a lua não estava iluminando o céu essa noite, nem mesmo era visível por trás das nuvens negras, mesmo assim, a garotinha agarrou-se a necessidade de ajudar o amigo e com as cesta em mão, trajando uma capa vermelha como a da Lilian por cima do casaco, ela saiu de casa. Torcendo para não ser pega, nem pela mãe, nem por ninguém.
           O lugar onde August estava, fixava do outro lado do povoado, Claire sentia o coração bater no peito a cada passo que dava. E a cada três segundos olhava para trás para se certificar de que não havia nada no seu encalço.
— Não seja tão medrosa, você já está bem crescida.— sussurrou consigo mesma, mas nem suas auto broncas surtiam algum efeito para diminuir o medo.
Estava tão frio e escuro.
Nem mesmo as tochas que iluminavam as ruas, estavam acesas. Na próxima vez, teria que dar um jeito de conseguir fazer isso a luz do dia, embora torcesse para que não houvesse uma próxima vez.
        Quando avistou a sela, Claire parou. Havia um rapaz bloqueando a entrada, de longe e no escuro não dava para ver quem era, mas não parecia ser Johan. Também não lhe pareceu que, quem quer que fosse, deixaria seu posto. Então sua única opção era mesmo ir até lá e apelar para que o "guarda da vez" deixasse uma pobre garotinha triste visitar seu amigo injustiçado. Chantagem emocional, sendo a filha mais nova, ela tinha certa prática nisso.

SANGUE & NEVE (+16)Onde histórias criam vida. Descubra agora